Por Teresa Nogueira Pinto*
Os acontecimentos em Lampedusa, a pequena ilha italiana a apenas 100 km da costa tunisina, marcam um ponto de viragem na política de imigração italiana. A crise, que se repete desde 2013, atingiu uma dimensão sem precedentes e em 24 horas chegaram cerca de 120 barcos à costa italiana. Em poucos dias, o número de migrantes ilegais chegou a 12 000, triplicando a população da ilha de 6 000 habitantes. No centro de acolhimento de migrantes e refugiados, com capacidade para 400 pessoas, concentraram-se cerca de 9 000.
‘O futuro que a Europa quer para si está em jogo’
Para a primeira-ministra italiana, o combate à imigração ilegal é uma «batalha histórica» para a Itália, mas também para a Europa: «É o futuro que a Europa quer para si que está em jogo, porque o futuro da Europa depende da sua capacidade para enfrentar os grandes desafios».
E a promessa de responder à imigração ilegal foi uma das bandeiras da coligação liderada por Giorgia Meloni, eleita há um ano. Mas, desde janeiro de 2023, chegaram cerca de 127 000 migrantes a Itália por via marítima, quase o dobro do número registado no ano passado, durante o mesmo período.
A crise de Lampedusa acontece poucos meses de pois de Meloni ter visitado a Tunísia na companhia do então primeiro-ministro dos Países Baixos e da presidente da Comissão Europeia. Da visita resultou o compromisso europeu com um pacote de ajuda que teria, como contrapartida, a cooperação de Tunes no combate à imigração ilegal e tráfico humano, e previa um investimento de 105 milhões de euros no controlo de fronteiras, incluindo financiamento de equipamento, treino e suporte técnico. Mas, até à data e segundo informação da Comissão Europeia, a disponibilização, pela EU, dos fundos acordados é um «trabalho em curso».
Uma explicação possível para este aumento de chegadas é a de, depois de um período de mau tempo ter obrigado à suspensão das travessias, o bom tempo e o aproximar do outono terem levado os grupos de tráfico a intensificar a atividade. Outra linha de interpretação para os acontecimentos de Lampedusa sugere que, considerando que Estados de origem ou trânsito podem utilizar os fluxos migratórios para extrair vantagens económicas ou diplomáticas junto de outros atores, o aumento dramático do número de embarcações sinalizava a impaciência da Tunísia, manifestada no aligeirar da segurança face às operações de grupos de tráfico. Por outro lado, depois da alteração da política externa de Espanha em relação a Marrocos (que incluiu a cedência na questão do Sahara Ocidental), Rabat implementou uma política de controlo de fronteiras mais restrita e muitos daqueles que arriscavam a viagem através dessa via optam agora pela Tunísia.
A maior parte destes migrantes são homens jovens, originários de países da África Subsariana, como a Costa do Marfim, Guiné, Camarões, Burkina Faso ou Mali, e dificilmente elegíveis para asilo. Cada um paga entre 600 e 1 500 euros pela travessia marítima. Apesar dos custos e dos riscos, a procura tem vindo a aumentar, alimentando as redes de tráfico humano que operam na região do Sahel e norte de África.
No domingo, as autoridades tunisinas expulsaram centenas de migrantes da cidade portuária de Sfax, porta de embarque para Itália, encaminhando-as para zonas rurais no interior.
Crise e oportunidade
De Lampedusa chegavam imagens de caos, algumas de violência, que acentuavam o sentido de urgência em resolver mais uma crise migratória. E, para Giorgia Meloni, Lampedusa pode ser uma oportunidade, oferecendo a possibilidade de reformar a política de combate à imigração ilegal e tráfico humano.
Vários sinais, incluindo o discurso da primeira-ministra e as medidas entretanto anunciadas, sugerem que o foco, mais do que na gestão das migrações, irá incidir sobre a diminuição dos fluxos migratórios.
Desde que chegou ao poder, Meloni tem apostado numa política externa de proximidade com os países do Norte de África, assente em parcerias energéticas, acordos económicos e cooperação na gestão de fluxos migratórios. Agora, a tentativa de diminuição desses fluxos deverá ser feita também através de ‘medidas extraordinárias’, incluindo um sistema mais eficiente de repatriamento. De Lampedusa, a primeira-ministra enviou uma mensagem aos potenciais migrantes: «Não faz sentido confiarem nos traficantes, porque eles vão tirar-vos muito dinheiro, pôr-vos num barco que não é próprio para a viagem e, quando aqui chegarem, serão detidos e deportados». Meloni anunciou ainda a construção de mais centros de detenção e a extensão do período de detenção até 18 meses. O conjunto de medidas, avisou, poderá incluir uma missão naval.
A partir de Nova Iorque, onde participou na Assembleia Geral da ONU, Meloni disse que a única solução seria a de «declarar guerra aos traficantes», e que isso será feito com «o apoio de todo o sistema multilateral e com a vontade de todas as nações que não aceitam ser chantageadas por organizações criminosas».
Josep Borrell, líder da diplomacia europeia, criticou as medidas. Já Ursula von der Leyen, que anunciou um plano de ação de dez pontos focado na prevenção da imigração ilegal e que inclui um possível acordo entre a Tunísia e o Frontex, mostrou-se solidária com Itália na visita a Lampedusa: «Seremos nós a decidir quem entra na União Europeia e em que circunstâncias. Não os traficantes».
Teste à solidariedade
O desafio colocado por estes movimentos migratórios é uma consequência do terramoto geopolítico provocado pela decisão, tomada pela Administração Obama, de depor Muammar Kadafi, que levaria à desintegração do Sahel, e consequente multiplicação de grupos armados e crime organizado. Uma decisão que Obama, que ganharia o Nobel da Paz, viria a classificar como «o pior erro da sua presidência». Mais de dez anos depois, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Antonio Tajani, disse que «Lampedusa é apenas a ponta do icebergue».
Mas Lampedusa é também mais um teste à coesão e solidariedade europeias. O secretário-geral do SPD, partido liberal alemão que integra a coligação de Governo, anunciou que vetaria qualquer plano de realojamento na Alemanha dos requerentes de asilo. O ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, expressou a sua solidariedade com as medidas excecionais anunciadas por Meloni, reconhecendo que «as coisas estão a ficar muito difíceis em Lampedusa». Mas Darmanin declarou, em entrevista à rádio Europa1, que França não iria receber nenhum dos requerentes de asilo, afirmando que a ideia de redistribuição pelos países europeus daria um «sinal errado» aos migrantes irregulares, o de que «são sempre e independentemente das circunstâncias, bem-vindos aos nossos países».
O tema será dos mais urgentes e polarizadores na campanha para as próximas eleições ao Parlamento Europeu. O grupo dos socialistas e democratas tem apelado à suspensão imediata do acordo entre a UE e a Tunísia. Do outro lado, no encontro anual da Liga Norte, em Le Pontida, o vice-primeiro-ministro, Matteo Salvini, recebeu Marine Le Pen e prometeu continuar a fazer tudo «o que for democraticamente permitido para bloquear a imigração que corre o risco de ser desastrosa». E Marion Marechal Le Pen, sobrinha da líder da oposição francesa e candidata pelo partido Reconquête! às eleições europeias, visitou Lampedusa, onde denunciou a «hipocrisia» de «políticas migratórias irrazoáveis» e expressou solidariedade «aos italianos e ao seu Governo, abandonados pela Europa». l
*texto editado por Sónia Peres Pinto