Marinho Peres, para sempre preso na jaula dos leões

1947-2023 

As vastas pradarias das minhas memórias já estão mais pejadas de mortes do que os campos da Flandres em 1918. E conto mais amigos desaparecidos do que vivos. É a inexorabilidade do tempo, afirmarão alguns e com razão. Já lá vão mais de três quartos da minha existência, é natural que muitos sejam os que ficam pelo caminho. «Amigos meus, está chegando a hora/Em que a tristeza aproveita pra entrar/E todos nós vamos ter que ir embora/Pra vida lá fora continuar», cantava o Vinicius. A tristeza entrou no meu dia quando era 18 de Setembro. Marinho Peres, um daqueles amigos antigos e sinceros, morreu no Hospital de Sorocaba, a terra que o viu nascer no dia 19 de Março de 1947.

Recordo pela primeira vez a sua figura peituda no Mundial da Alemanha Ocidental, em 1974, ainda havia o eco longínquo daquele samba inesquecível do Brasil irretocável e perfeito do México numa televisão qualquer, riscas descendo pelo meio das fintas de Rivelino e dos arranques de Jairzinho e da arte impossível de Pelé e de Tostão. É verdade que Rivelino ficara. E Jairzinho. Mas algo se quebrara com a vulnerabilidade de um pucarinho de Estremoz. Hoje, 39 anos depois, sei o que foi. Foi a confiança: aquela coisa que demora tanto a chegar mas, quando parte, é para sempre. Na Europa, o Brasil quis ser europeu. Zagallo, o treinador, arregaçou as mangas e recuou o time. E todo o mundo dava porrada! Rapidamente uma canção foi-lhe atirada à cara como um tomate podre: «Desculpe seu Zagallo/Puseram uma palhinha na sua fogueira/E se não fosse a força desse pau pereira/Comiam um frango assado lá na jaula do leão/Mas não tem nada não!» A eliminação frente à Holanda de Cruyff foi como a passagem do testemunho do futebol-arte. Em 20 minutos, a laranja-mecânica trucidou os canarinhos que perderam o pio.

O encontro entre as duas selecções teve laivos de homérico. O leão da jaula era Leão, do Palmeiras, o pereira do pau era Luís Pereira, central também do Palmeiras que seguiria para o Atlético de Madrid, e depois o Brasil tinha os dois Marinhos, Marinho Chagas, de longos cabelos loiros, garoto do Botafogo, e Marinho Peres, do Santos, um calmeirão com 27 anos, todo ele carácter e grito, nomeado capitão, que viria a ser contratado pelo Barcelona para fazer companhia a Cruyff. Marinho Peres, o monstro desgrenhado, procurando organizar um grupo destroçado, acorrendo a todos os buracos que se abriam na sua defesa, perseguindo Neeskens à patada como se este fosse uma ratazana. Marinho Chagas parecia num concurso de cuspo à distância, tendo os adversários como alvo, Zé Maria agarrava Cruyff pelas pernas quando os dribles deste o deixavam de rojo no chão. Do outro lado, Rivelino foi escolhido como vítima. Entradas assassinas sobre o canhoto-maravilha e este, desesperado, tentando revidar. Os golos de Neeskens e Cruyff apuraram a melhor equipa. O Brasil sem samba regressou a casa preso na gaiola dos seus equívocos. Marinho Peres, de camisola azul-escura, braçadeira de capitão alva no braço esquerdo, parecia um gladiador observando a desolação em seu redor. O cabelo pingava-lhe de suor e ele era como que se adivinhasse que nunca teria outra hipótese de jogar a final de um campeonato do Mundo. Abriu um sorriso escarninho. E, em Dortmund, como num eco, ouviu-se muito ao longe: «Desculpe seu Zagallo/A crítica que faço é pura brincadeira/Espírito de humor, torcida brasileira/A turma está sorrindo para não chorar/Tá devagar…»

Marinho era meio-espanhol. O seu pai era madrilenho, Perez depois transformado em Peres no nome do filho; a sua mãe era de Navarra – da família Ulibarri. Franco, o Caudilho, resolveu embirrar com Marinho e com o Barcelona – mandou-o cumprir o serviço militar. Consigo ouvir a voz grossa do Marinho irritado: «Vá tomar no cu dele!» Borrifou-se para a tropa e para o futebol espanhol, regressou ao Santos, onde jogou com Pelé, amaldiçoando o generalíssimo com a mesma gana com que amaldiçoou Cruyff quando o viu marcar o 2-0 aos 65 minutos do jogo de Dortmund.

O pai de Marinho queria ver o filho médico. Tentou tudo o que pôde. Mas Marinho também era teimoso como um muar. Enquanto se fazia jogador no São Bento de Sorocaba, tirou o curso de Economia. Nunca se serviu dele. Nem sequer para ser forreta, ele que era de uma generosidade desarmante.

Portugal no coração

Marinho Peres terminou a carreira de jogador no América do Rio de Janeiro e começou aí a ser treinador. Em 1986 desembarcou em Portugal para comandar o Guimarães. Com Paulo Autuori como adjunto, levou o Vitória ao terceiro lugar na classificação final e aos quartos-de-final da Taça UEFA. No ano seguinte foi para o Belenenses. E então ficámos amigos. Eu costumava ligar para casa do Marinho Peres, no tempo em que os telefones obedeciam às leis dos fios, e ouvia inevitavelmente, do outro lado, a sua voz cava: «Fala, garoto!» Ele gostava daquele tratamento de tipo mais velho, uns dezassete anos mais do que eu, nessa altura uma vida bem preenchida, e depois partíamos na grande aventura dos almoços prolongados com histórias e episódios infinitos, desbobinados à medida da sua memória. Foi assim em Guimarães, em Lisboa, no Funchal. Marinho eternamente amigo; eternamente divertido; profundamente bom. Parece que já lá vão muitos anos, e vão mesmo. Os anos atropelam a gente e não olham para trás nem pedem desculpa por todos os desenganos que nos trazem à medida que vão de mão dada connosco pela viela sinistra que vai dar à porta da velhaca senhora da gadanha.

Canalha, um AVC apanhou-o distraído, talvez a rir-se, ele que sempre fez questão de rir, de rir muito, de que todos se rissem muito em seu redor. Vi muitos treinos do Sporting sentado a seu lado num banco de madeira corrido, junto à linha lateral do antigo campo de treinos de Alvalade. Dava-me uma cotovelada e dizia: «Vê! Vê! Não tem como enganar. Aquele cara lá na frente vai cair outra vez no impedimento!» Vinha o lance e era tal e qual como descrito, um passe de Figo ou Balakov, daqueles de bandeja com pastel de bacalhau, cervejinha, palito e tudo, direito aos pés do avançado-centro, e o apito do adjunto interrompendo por fora-de-jogo. «Eu não te disse!», ria Marinho um riso de nervos: «Vá tomá no cu dele!!!»

A última vez que estive com ele foi no Jardim Zoológico, para uma entrevista. A sua cabeça grande, de juba descabelada de leão, já tinha muitas tiras brancas. A última vez que o vi não sabia que seria a última. Fiquei com um abraço dependurado para lhe dar.