Na Avenida Brasília, à beira rio, o movimento é o mesmo de todos os dias. Há quem pratique o seu desporto matinal, quem esteja de passagem e quem suba ao miradouro do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT) apenas para tirar umas fotografias à vista. No entanto, quem passa pela entrada do museu é surpreendido por um gigantesco anel feito de jantes de automóveis. Trata-se, inconfundivelmente, de uma obra da artista plástica portuguesa Joana Vasconcelos que hoje apresenta a exposição individual Plug-in no MAAT, reunindo obras inéditas, algumas das peças icónicas produzidas desde 2000, e obras da Coleção de Arte Fundação EDP. A curadoria é do diretor do museu, João Pinharanda.
Whisky e carros desportivos
O tema do desejo encontra-se no epicentro desta criação que reproduz um anel de noivado em escala monumental. “Esta peça fala sobre o desejo e a ideia de perfeição, como é que a ideia de felicidade está associada a uma série de estereótipos, tanto masculinos como femininos”, explica a artista junto ao trabalho composto por 110 jantes de automóvel douradas a criar uma circunferência coroada por uma pirâmide invertida formada por 1450 copos de whisky em cristal, simulando um diamante gigante. “A ideia de felicidade está associada aos homens que querem ter uns carros muito desportivos com umas jantes douradas e gostam de beber whisky nos seus copos dourados. A ideia de luxo… Já as mulheres acham que para serem felizes têm de casar, com um homem muito rico [risos] que lhes ofereça um belo de um diamante”, explica, acrescentando que esta peça fala precisamente desse encontro de expectativas, «essa ideia artificial ligada a bens». O anel chama-se Solitário para haver um reforço da ideia de que a solidão “é também um assunto do casamento”. A peça criada em 2018 para o exterior do Guggenheim de Bilbau no contexto da exposição I’m Your Mirror, passou ainda pela Kunsthal de Roterdão, o Parque do Museu de Serralves e o Yorkshire Sculpture Park.
Também no exterior, perto do MAAT Central, uma enorme máscara feita de espelhos devolve os raios de luz e as faces de quem por ela passa. Aludindo ao papel dos artistas na sociedade, em I’ll be your mirror, de 2019, Joana Vasconcelos cria um jogo de reflexos e ocultação. Servindo-se de 255 molduras barrocas em bronze (desenhadas e profusamente decoradas pela artista) e de 510 espelhos de mão sobrepostos como se de escamas se tratasse, constrói uma surpreendente máscara veneziana. “É a primeira vez que esta peça é mostrada no exterior. É uma peça que fala sobre a multiplicidade de identidades que tem o artista ao longo de uma carreira. Eu queria mostrar quem eu era e a multiplicidade de peças que fiz ao longo dos anos. As personalidades que um artista toma para desenvolver a sua obra estão representadas pelos diferentes espelhos”, conta Joana Vasconcelos.
Uma equipa enorme
A viagem segue até ao interior do museu. Ao entrar, o público é surpreendido por uma obra colossal. Parece que estamos diante de todo um novo mundo, um mundo encantado onde imperam as cores, as luzes, as texturas, os sonhos. Trata-se de Valkyrie Octopus, uma das suas esculturas inspiradas nas figuras femininas da mitologia nórdica que sobrevoavam os campos de batalha, trazendo de volta à vida os mais bravos guerreiros, para se juntarem às divindades em Valhalla. As Valquírias de Joana Vasconcelos são elaboradas com materiais têxteis, empregando uma diversidade de tecidos, croché e passamanaria. Neste caso particular, a artista empregou tecidos nobres que nos remetem para a Rota da Seda e a interligação entre as tradições portuguesas e macaenses numa criação site-specific para o casino MGM Macau. O projeto – insuflável, o que facilita o transporte – demorou um ano a ser construído e esta é a primeira vez que a equipa que o criou o pode ver ao vivo. “Somos uma equipa enorme. No meu ateliê trabalham 53 pessoas. A Valquíria é feita por partes e só depois se monta. É a primeira vez que está a ser exposta em Portugal pelas suas dimensões. Nem todos os espaços conseguiriam receber esta obra”, revela. “Tirando a equipa da montagem que vai com as peças para os lugares, não posso levar a equipa toda atrás. Este é, por isso, um momento bastante importante para nós. Finalmente as pessoas que efetivamente as fazem vão ver como as peças resultam ao vivo”, frisa. “Entre ser feita, ser levada para Macau, montada, já lá vão quase 10 anos. Daqui que, finalmente, ver o resultado, ver como a peça se comportou, como está impecável passado tanto tempo, é muito interessante”, acrescenta.
Inseridos num cenário preto, na MATT Gallery, estão ainda a inédita Drag Race de 2023, que estabelece um diálogo com War Games, de 2011, duas viaturas convencionais transformadas em obras de arte: a primeira exuberantemente ornamentada com talha dourada e plumas, a segunda coberta com espingardas brincar e recheada com bonecos de peluche. “Esta é a sala que dá título à exposição, Plug-in. Carros, eletricidade, sustentabilidade… Este foi o meu primeiro carro», comenta Joana Vasconcelos acerca do automóvel utilizado na obra War Games. «O meu avô achou por bem oferecer-mo. Guiei-o muito pouco tempo, mas depois guardei-o para fazer uma peça que tivesse a ver com a dimensão da segurança», lembra a artista plástica junto ao veículo. «Ele tem uma série de peluches que se mexem lá dentro e que fazem barulho, portanto, tem o lado das brincadeiras dentro de casa – um espaço seguro – e, depois com as espingardas que o forram, represento as brincadeiras do exterior que são de lutas, guerras, confrontos”.
A artista plástica deu também uma nova vida a um Porsche 911 Targa Carrera, partindo da opulência do barroco e das curvas generosas da talha dourada. Para a concretização do projeto recorreu aos artesãos da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva – do tratamento da madeira ao douramento, passando pela cinzelagem e gravação –, criando “uma obra única no mundo que também é uma celebração da perícia manual”. As figuras angelicais e as plumas vermelhas conferem à peça a ilusão de voo e de velocidade.
Das colunas na sala ouve-se a voz de Frank Sinatra, na música Strangers in the Night, canção que dá título a uma outra peça da artista. A promessa de amor fugaz, tornada na canção em amor duradouro, é desmentida neste dispositivo: o décor interior de uma cabine de peep-show em napa branca aberta ao espetador, forrada exteriormente de farolins de carros que piscam continuamente, fala-nos apenas de carros rodando na noite, de homens procurando os amores baratos e fortuitos de uma qualquer mulher, ausente de cena mas subjugada.
Regressando ao MAAT Central, fixada na entrada do edifício está a Árvore da Vida, uma criação site-specific para a Sainte-Chapelle de Vincennes, em Paris, mas que propõe um diálogo com a escultura de Gian Lorenzo Bernini na Villa Borghese. A artista plástica imaginou a árvore em que a figura mitológica de Dafne se torna quando, fugindo às investidas amorosas de Apolo, decide transformar-se em loureiro.
No confinamento a que o seu ateliê se viu forçado devido à pandemia de covid 19, pediu aos artesãos que com ela trabalham que se ocupassem da produção de folhas. “São 140 mil no total, todas bordadas à mão, com motivos diferentes, assentes em 354 ramos formando uma árvore com mais de 13 metros de altura”, conta. “Há aqui uma série de folhas bordadas à mão e outras têm LEDs que foram cosidos à mão. São 110 mil bordadas à mão e o restante com as luzes. É um trabalho que só foi possível porque ninguém tinha nada para fazer”, acrescenta. “Acho que se pode sentir o trabalho que tivemos nesta peça. Se fosse hoje, seria impossível fazê-la”.
Levada a cabo em colaboração com o Centre des Monuments Nationaux para celebrar a Temporada Cultural Portugal-França 2022, a obra reforça a verticalidade do vínculo entre terra e céu, mundano e espiritual.
A exposição Plug-in estará patente no MAAT até ao dia 25 de março de 2024.