Cantar surgiu como entretém durante as viagens de carro em família. Aos 10 anos participou no concurso Bravo, Bravíssimo, transmitido na SIC. Antes disso já era a estrela nas festas da escola. Por isso, a sua carreira já é longa. A maneira como sente e faz música tem-se alterado muito com o passar do tempo?
Várias coisas! Para já, quando começas a trabalhar neste ofício há um peso associado, porque tens de ganhar o teu pão. De repente, após a Eurovisão também houve uma pressão da valorização dos colegas, que antes não existia – eu antes cantava por pura alegria, quando não dependia disto. Obviamente que quando entra a indústria em jogo também há preocupações com ela, tudo o que tem a ver com visualizações, venda de bilhetes, tudo isso são preocupações que não existiam quando eu cantava nas festas da escola. (risos) Mas, devo dizer que muitos dos meus colegas, muitos músicos com quem eu toco, invejam a maneira como eu ainda romantizo bastante a música e eu acho que guardei o meu amor genuíno por ela. Quando eu vou ver um concerto – fui ver o Caetano Veloso no outro dia –, sei o que está a acontecer musicalmente, porque eu estudei, mas isso não me leva a intelectualizar a música, leva-me a senti-la ainda mais, porque percebo aquilo que está a acontecer. Se a coisa em que a formação me ajudou foi a sentir ainda mais a música. Mantenho uma relação natural com ela. Foi isso que o meu pai me passou. Uma paixão grande sem qualquer tipo de amarras ou frustrações.
No que é que a sua infância ditou o artista que é? Fala do seu pai… A sua irmã também começou a dar os seus primeiros passos ainda em criança…
Era muito à base de ouvir discos. Beatles como a referência principal. Ajudou-me muito no desenvolvimento do meu ouvido, porque o meu pai umas vezes pedia para eu cantar a parte do John Lennon e à minha irmã que cantasse a parte do Paul Mccartney. De repente era eu que fazia as harmonias e ela cantava a voz principal… Ele pedia que adivinhássemos quem estava a cantar, porque nos Beatles canta quem escreveu a música… Tinham de adivinhar os timbres. Eu acho que os Beatles são uma grande porta de entrada para qualquer criança que queira perceber a música. Tem todo o espetro de música: fácil e divertida, até à música profunda e complexa. Eu diria que foi desta forma que nós entrámos na música, tanto eu como a minha irmã. Eram viagens de carro maravilhosas… Depois passei para as festas da escola.
As festas da escola foram importantes nesta caminhada…
(risos) Põem-nos em cada papel nessas festas… Houve um ano em que tive de fazer de parede, imagina… A ideia era que existisse uma tela enorme com buracos e nós subíamos andaimes e cantávamos com a cabeça enfiada nessa parede. Fazíamos os coros. Eu só pensava:’Eu não quero ser uma parede! Tenho 11 anos…’. Então disseram que havia espaço para um solista e eu fui. Cantei e, a partir desse momento, o professor escolheu-me sempre a mim como cantor.
Por mais que tivesse essa paixão, seguiu Psicologia no ISPA até ao terceiro ano, por mais que já tenha admitido que não ia às aulas há algum tempo…
É uma relação que acontece desde sempre na vida. E eu comparo-a sempre como uma relação conjugal ou familiar. Tem os seus altos e baixos… Eu aos 16 ou 17 disse para mim: ‘Eu não posso fazer só isto. Não posso ser só cantor! Quero ser outra coisa’. Chateei-me, tive o meu período de tristeza. Saí dos Ídolos bastante magoado com aquilo que era a música… Eu confundi entretenimento com música. Pensei que a música era aquilo, mas aquilo é puro entretenimento. Tive mesmo uma fase de rejeição da música. Foi por isso que eu estudei psicologia e, como disse, vem tudo do mesmo sítio. Há uma relação muito próxima. Fazendo uma introspeção, eu tenho um fascínio pelo ser humano. Sinto que foi esse meu amor pelas pessoas que me atraiu tanto à música – porque eu percebi que a música as tocava e que eu tinha nela um canal direto, para mim a música é o canal mais direto para a alma das pessoas. Na psicologia queria tentar perceber as pessoas, entender a psique, tocá-las e ajudá-las de algum modo. Depois percebi que a minha vocação falava mais alto.
E foi quando fez ERASMUS em Mallorca que percebeu isso?
Quando estava a estudar no ISPA em Lisboa, só copiava dos outros. Uma vez, tive um 18 em neurociências, a própria professora sabia que não tinha sido eu a fazê-lo, mas não tinha provas. (risos) Então fui de ERASMUS, a vida um bocadinho louca e, numa noite, acabámos num bar. Estava lá uma banda e uns amigos que sabiam que eu cantava, disseram-me para subir para o palco. Fui, a pensar que o ia fazer para apenas os fazer felizes e um guitarrista que lá estava, que acabou por ficar meu amigo, perguntou-me o que é que eu queria cantar. Eu respondi Ray Charles. Ficou intrigado. Um puto de 20 anos com ar de ter 15… Cantei uma balada incrível e ele convidou-me para trabalhar da música, ganhar um dinheiro. Aceitei. O telemóvel começou a tocar e a tocar… Mallorca tem um mercado enorme de restaurantes, bares… Comecei a trabalhar sem parar, tinha dois e três concertos por dia. Deixei de ir às aulas. (risos) Pensei: ‘Ok, não vou negar mais isto. Isto é a minha missão. Eu sou cantor!’.
E seguiu-se Barcelona, para fazer formação musical…
A minha irmã disse-me: ‘Se queres isto verdadeiramente, tens de estudar, tens de perceber o que se passa atrás da música, para poderes tocar, compor, estar com músicos’. Pensei: ‘Esta sacana tem razão’. E segui para Barcelona que foi a academização. Tentar tocar um instrumento, que é uma coisa essencial quando queremos fazer disto vida. Serviu-me para perceber as minhas referências… Encontrar a minha própria voz e, sobretudo, conhecer o Leo Aldrey, que me fez perceber que eu tinha de compor. Continuamos a trabalhar juntos.
Dizia que os Ídolos não foram um período fácil e que levaram a uma zanga com a música… No entanto, aprendemos sempre qualquer coisa, não é… Aprendeu o que não queria para si?
Exatamente! Aprendi aquilo que não queria fazer e aprendi, sobretudo, que não sabia quem era… Tinha 19 anos e artisticamente não sabia nada. Em Mallorca já tinha um bocadinho mais de noção, mas imitava os cantores. Demoramos muito tempo a encontrar a nossa personalidade artística. Quando não sabes quem és, eles criam a tua personagem. Eles meteram-me numa gaveta. Isso serviu-me para procurar inspirações e criar a minha própria personalidade artística depois. Noutros programas do género há artistas que vão e que já sabem o que estão a fazer. Como o Tiago Nacarato, a Bárbara Tinoco… É uma rampa e isso eu acho bem!
Agora, a sua arte tem-no levado a todas as partes do mundo. A maneira como os públicos sentem as músicas é muito diferente?
Muitíssimo diferente! Não só entre países como entre regiões de países. O público de Andaluzia não tem nada a ver com o público da Catalunha,por exemplo. Eu adoro isso! Se há coisa que eu gosto é de ter um público, percebê-lo, tentar cativá-lo e convertê-lo a mim e à minha proposta em palco. Às vezes é mais difícil. Cada país tem a sua cultura. Uma coisa que eu faço que ajuda bastante é falar bastante na língua, tenho uma série de frases que aprendo, em todas as línguas dos sítios onde já cantei. E canto sempre uma canção local. Sinto que isso também quebra o gelo. As pessoas sentem-se acarinhadas e acham engraçado. Eu trabalho bastante para cada concerto.
Fala muito dessa simbiose entre os artistas e o público. Para si é importante que exista um feedback da outra parte. Quando não acontece, é frustrante?
Muito! E é uma coisa que me estão sempre a dizer que tenho de controlar. Houve um concerto no norte do país onde a receção foi zero. Eu não sentia nada do público e disse: ‘Bora bazar! Fazer mais duas canções e vamos embora’. Não tens outra hipótese. O concerto perde, porque eu vivo da energia das pessoas. É muito difícil.
No último disco – BPM – que saiu no ano passado, quando as pessoas entravam na sala, vocês já estavam no palco. Essa era uma forma de desconstruir a ideia que muita gente tem de que os artistas são quase intocáveis?
Sim! Eu nunca considerei a música como algo especial. Para já, nunca gostei muito de pessoas que se levam demasiado a sério e, infelizmente, a nossa classe, tendem a fazer isso. O seu ‘eu artístico’. Sempre lutei para que dentro da banda haja uma democratização, tentar pagar bem aos músicos e não receber três ou quatro vezes mais, o que acontece muitas vezes. Acho abominável. Sempre lutei por essa justiça. Luto muito pela igualdade na música e entre músicos. Mas é exatamente isso… Tentar desmistificar. O palco é mais alto só por uma questão de perspetiva, para toda a gente ver, não é porque somos superiores. Faço questão de cantar uma ou duas músicas em baixo, sem microfone. Tanto para estar mais próximo das pessoas, como para mostrar que há zero hierarquias.
Mas este é também um meio muito duro. O que é que mais o entristece no panorama cultural em Portugal?
Sinto uma desilusão profunda com a maneira como o Estado trata os seus artistas. A falta de apoio que há. Quando eu vou falar a uma escola e um pai ou mãe me perguntam o que é que é melhor fazer, porque o seu filho quer ser músico, eu digo que é sair daqui o mais rapidamente possível! Gostaria de poder dizer outra coisa, mas não me sinto nada apoiado! E eu sou um privilegiado… Mas tenho muitos amigos que sofrem e são músicos. Eu sou casado com uma atriz francesa e vejo os benefícios que ela tem todos os dias. Recebe uma licença de maternidade de jeito, subsídios, um trabalho normal. Está protegida. Em Portugal as coisas não funcionam assim e eu já não me surpreendo. Não sinto que o futuro seja encorajador.
No BPM as músicas foram todas escritas por si. No entanto, diz que não se orgulha das suas composições e que é muito mais intérprete que compositor. Isto é um sinal de insegurança?
Claramente! Temos de ter em conta que eu canto desde sempre. Compor, só há seis anos. É um músculo que se tem de exercitar. Eu ainda estou longe de ter o nível que tenho como intérprete, na composição. É difícil. Mas sinto-me acompanhado pelo público. Estou agora a escrever canções e sinto que o público também vê uma evolução. Eu sinto que as músicas são melhores neste novo disco TIMBRE, mas também não consigo ser muito objetivo, acho que isso ainda me vai demorar uns anos.
E quando escrevemos é natural que o façamos pensando em nós e nas nossas vivências? Neste novo álbum TIMBRE, vai até às suas entranhas?
Neste novo disco tenho várias canções autobiografias, sobre as minhas emoções e sobre as minhas vivências. É o disco onde isso mais acontece. Acho que isso é bom sinal. Quando eu falava muito sobre outros personagens era mais fácil. Desde a primeira canção ‘Amor à Capela’, que é uma canção para a Jenna; à segunda canção ‘Porque Canto’, em que eu listo as razões pelas quais em canto; à ‘El Regalo que me hiciste’, que é uma canção para o dador de órgão que me deu o coração… Há muito tempo que tinha vontade de fazer uma canção de gratidão a uma pessoa que teve de morrer e doou o seu órgão para eu viver. Isso é uma coisa muito difícil. E escrevi-a em espanhol… Foi uma forma de me distanciar um bocadinho. Se não, começava a chorar sempre que a cantava. Neste disto, vou mais às entranhas do que em qualquer outro, é verdade.
E diz que assim que lança um novo álbum, deixa de gostar dele. Isso vai acontecer também neste?
Espero que sim! Isso significa que vou ter de fazer outro! (risos) Um dia que eu estiver conformado com um disco, deixo de fazê-lo.
Quando faz música faz a pensar em si e naqueles que consigo trabalham. Há músicos que o fazem apenas pensando no público. Acha que isso contribui para a imagem que algumas pessoas têm de si? É considerado por muitos um artista mais irreverente.
Eu acho que sou considerado irreverente pelas coisas que digo! (risos) Não pelas coisas que canto. Foi o personagem que as pessoas escolheram para mim. Aquele menino que não é perfeito, bem comportado, cantor feliz por ter ganhado a Eurovisão. Essa altura revoltou-me muito e eu estava muito doente. Também quis chocar um bocado. Mas eu gosto dessa imagem! (risos) Agora tenho muitos mais filtros do que os que tinha nessa altura, mas também tenho esse lado de não aceitar tudo.
A música ‘Amar pelos Dois’ valeu-lhe a vitória nessa edição. Depois disso, como já falámos, a sua vida mudou. Deve ser frustrante que algumas pessoas só nos conheçam apenas por uma canção. Há músicas que acabam por nos assombrar?
Não diria assombrar… Ela acompanha-me e só o facto dela me acompanhar custou-me a entender e a assimilar. Vou ter 80 anos e vou andar a cantar essa música de bengala no palco! (risos) Houve uma altura que rejeitei isso. Não queria ser reduzido a essa canção e, por isso, deixei de tocá-la. Mas depois não me sentia bem com isso. As pessoas gostam da canção e sentem uma ligação tão forte com ela… Não era justo. O Caetano canta o ‘Leãozinho’. Quem sou eu para não cantar o meu hit? Essa canção mudou a minha vida e tenho de aceitar e cantá-la. Eu devo isso às pessoas e a mim próprio.
O álbum BPM era denso e escuro, tal como escreveu no seu texto de apresentação deste último TIMBRE, onde fez uma coisa diferente… Queria que ele fosse luminoso, solar, alegre…
O álbum traz mais cores e mais luz, está mais brincalhão. Era o que eu queria expressar, não só pela chegada da Aida, que trouxe tanta luz para a minha vida, como por isso ser uma coisa muito viva em mim. Sou tropical e gosto de músicas solares. Pouca complexidade, músicas que as pessoas possam facilmente cantar e tocar. Foi essa a proposta para este novo disco. Claro que há algumas canções que fazem lembrar o disco anterior, mas sinto que está um disco alegre.
Na primeira música, ‘Amor à Capela’, canta despido de instrumentos. Isto diz-nos à partida alguma coisa sobre este projecto?
Nós queríamos que o disco fosse focado na voz. Que a voz fosse mesmo a protagonista. Os outros discos são feitos mais à base da banda de jazz, há uma maior democratização de instrumentos. Também por isso ela fica mais densa. Aqui, sendo o timbre o importante, queríamos que fosse a voz o principal elemento. É o que me distingue. Custou-me algum trabalho encontrar uma identidade artística, não foi fácil que as pessoas acendessem o rádio, tivesse a minha voz a dar e as pessoas soubessem automaticamente que era eu a cantar… Estou super agradecido por ter conseguido fazer isso. Por isso, queríamos que o disco fosse uma ode à voz. Nada melhor do que começar uma canção à capela.
A música ‘Canto’, parece-me quase um manifesto. Canta por vocação, para emocionar, para impressionar, para agradar, para se afirmares, canta por instinto e leve erudição. Isto é um manifesto. Diz que nas suas músicas ‘vomita a alma’…
Eu disse isso? Acredito que sim! Gosto do termo ‘vomitar’, porque também tem esse lado grotesco. A cantar – também como um ator -, gosto de experimentar todo o espetro de dimensão humana. Uma canção mais alegre, com um personagem mais alegre, uma canção mais sarcástica com um ar cínico. Gosto de estar perto da alma quando canto. A música é isso – alma com alma. Nem sei cantar sem alma. Acho que nunca o fiz. Ou talvez o tenha feito… (risos)
Tal como nos outros, em TIMBRE, temos a oportunidade de o ouvir em português, espanhol, francês. Sente que isso o torna num artista mais eclético? Através da língua vemos diferentes Salvadores?
As línguas também são parte de quem sou e não sei se sentes isso, mas quando falamos diferentes línguas, parece-me que temos diferentes personalidades. Essas personalidades são inspiradas por estímulos que temos nessas mesmas línguas. Falamos inglês e vemos aquelas séries sobre sarcásticas americanas, vamos ter essa forma sarcástica de falar. Em espanhol, pelos meus amigos, pela música que ouço, sai algo mais tropical. Em francês, um espectro mais romântico, com a inspiração do Jacques Brel e por ser casado com ma francesa . Adoro explorar isso. Por outro lado, temos a explicação puramente acústica e de sons. Cada idioma tem os seus vocábulos. Assim como o guitarrista tem os seus pedais com sons diferentes, eu tenho os meus pedais na garganta de usar diferentes línguas que me proporcionam diferentes sons.
Mais uma vez, a Luísa Sobral, sua irmã, partilha consigo uma música do álbum escrita por si, para além de ter escrito outra. As músicas são especiais por existir essa intimidade?
A minha irmã já compôs muito para mim. É a pessoa que melhor compõe para mim. Coisa que ela nunca tinha feito era cantar uma canção minha, neste álbum foi a primeira vez. E ficou uma canção muito bonita, apesar das minhas inseguranças. Além disso, também assina uma outra música que se chama ‘Se quando tu vieres’. Eu às vezes tenho conversas com ela ao telefone sobre emoções e ela traduz em canções sem me avisar. Nessa altura a Aida estava quase a nascer e eu dizia-lhe: ‘Ai tenho medo de ficar preso na minha carreira, ficar demasiado focado na filha’. A verdade é que, desde que chegou, relativizei mil vezes essa coisa do Grammys. Estou mais agradecido por poder trabalhar e quando não estou a trabalhar estou agradecido porque tenho mais tempo para estar com ela. (risos)
Ter uma música em francês era imperativo? Tornou-se mais especial por ser a sua mulher, Jenna, a escrevê-la?
A canção ‘Les eaux qui me gardent’, surgiu porque eu tenho um fascínio pela história do avô dela que morreu no oceano, o avião caiu, nunca se encontrou o corpo… Nós falamos muito sobre isso, ela até fez uma peça de teatro sobre isso. É uma personagem muito interessante para além disso. Então, um dia, disse que ia escrever uma canção sobre ele. Comecei a escrever e ela disse: ‘Dá cá’. Fechou-se no quarto com o computador, esteve lá três horas fechada, e escreveu a música. Ficou a letra dela, com três frases minhas. (risos)
Antes do nascimento da Aida dizia ter dois sonhos: construir uma família e ganhar um Grammy. A família já está… (risos)
Eu ainda tenho o sonho do Grammy, mas está um pouco adormecido. Eu próprio ainda estou meio adormecido…