A falta que os EUA ainda vão fazer

Com todos os problemas que a liderança global norte-americana teve, a verdade é que os aliados e adversários sabiam com o que contar.

Os EUA foram, desde meados do século XX e no início do século XXI, a potência central na definição do sistema internacional. Foram fundamentais na resolução da I Guerra Mundial e na construção do sistema internacional posterior (que ruiu também pela sua ausência). Foram essenciais na viragem da II Guerra Mundial, derrotando a Alemanha e os aliados, fazendo nascer a nova ordem internacional do pós-euromundo.

A vitória na Guerra Fria deu lugar a um mundo hegemónico, no qual os EUA se impuseram como o ator central do sistema. O século XXI seria, muito previsivelmente, o século dos EUA. Todavia, apenas 23 anos depois, tudo parece ter-se alterado.

A globalização e a transferência de produção e de riqueza para países como a China, Rússia e outros, bem como as revoluções digitais, energéticas e nas comunicações, trouxeram um sistema internacional fragmentado, no qual diversas novas (e velhas) potências se assumem como revisionistas da ordem estabelecida.

Paralelamente, aquela transferência de riqueza (e de poder) permitiu a fragilização de camadas sociais largas no ocidente, causando brechas internas que permitem a ascensão dos radicalismos políticos, esboroando o centro político e o bom senso.

Esta transformação é particularmente notória nos EUA, que parecem ter entrado numa espiral autodestrutiva, dificilmente previsível há poucos anos.

Se, há 30 anos, alguém dissesse que o líder da Câmara dos Representantes dos EUA ia ser retirado do cargo por proposta de um outro congressista do seu próprio partido, certamente que se diria que a situação era impensável. No entanto, foi isto mesmo que aconteceu esta semana.

Se, há 30 anos, alguém imaginasse que um ex-Presidente da República dos EUA teria o histórico que Donald Trump tem e que, depois de Presidente, aprofundasse esse histórico para, ainda assim ter o apoio do partido e liderar sondagens, ninguém admitiria tal situação. Ainda assim, é essa a perspetiva mais provável.

Se, no mesmo período, alguém dissesse que um presidente com 80 anos (nos EUA o lugar de presidente é um cargo executivo), com algumas das dificuldades que o tempo origina, era o mais bem posicionado candidato para o lugar, dir-se-ia que isso não era possível. Todavia, este é o contexto atual.

Esta distância temporal refere-se precisamente ao período do início do sistema pós-Guerra Fria, auge do poder norte-americano. Nesse tempo, a política externa dos EUA era consensual, os senadores e os congressistas seniores eram instituições e o Presidente, Bill Clinton, tinha tomado posse em janeiro de 1993 com 46 anos.

As divergências internas sobre o papel dos EUA no mundo, entre ‘protecionistas’ e ‘internacionalistas’ (chamemos ambos com estes termos), datam quase da fundação dos EUA, prolongando-se ao longo do tempo, mas nunca de modo tão visível, nem com tantos custos para aliados e para o próprio sistema internacional – também porque no passado a importância dos EUA no sistema não era a mesma.

Com todos os problemas que a liderança global norte-americana teve, a verdade é que os aliados e adversários sabiam com o que contar. Hoje ninguém pode dizer o mesmo. Definir uma estratégia política com base nesta imprevisibilidade pode implicar ficar
sem nada.

A liderança (e a previsibilidade) norte-americana era essencial à ordem. Mais depressa do que mais tarde fará muita falta.