A anatomia de Tulp

O cadáver pertencia a um homem enforcado naquela manhã por roubo à mão armada.

Não deverá existir uma pintura que integre estética, história e conhecimento – médico, científico e filosófico – tão habilmente como A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp (1632), de Rembrandt. Talvez por isso, raramente uma obra de arte tenha suscitado tanta análise e discussão como esta. No entanto, não se pode afirmar que tenha inaugurado um capítulo totalmente novo na interseção entre arte e medicina.

O tratado de anatomia Da Estrutura do Corpo Humano (1543), do belga Andreas Vesalius, já tinha sido publicado. Com ilustrações dos melhores desenhistas da época, incluindo Jan van Calcar, discípulo de Ticiano, esta obra seminal influenciou os retratos das lições de anatomia. Poderá até ser este o livro que se vê à direita, na tela de Rembrandt. Além disso, Leonardo da Vinci tinha representado com grande detalhe anatómico os corpos humanos que ele próprio dissecava. E, de resto, no seu país, Rembrandt não foi sequer o primeiro a abordar a temática: em 1603, Aert Pietersz já tinha retratado a lição do Dr. Egbertsz. Ainda assim, o então jovem pintor criou uma obra-prima que, quase 260 anos depois, ainda ressoava n’ A Clínica do Dr. Agnew, a impressionante tela do norte-americano Thomas Eakins, que mostra uma aula de cirurgia na qual já surgem duas mulheres: uma enfermeira e a paciente, submetida a uma mastectomia.

Em finais de 1631, ao mudar-se de Leiden para Amesterdão, Rembrandt, com 25 anos, instalou-se na casa do comerciante de arte van Uylenburgh, com cuja sobrinha se casaria três anos depois. No imediato, o papel do marchand foi outro: conseguiu que a Guilda dos Cirurgiões de Amesterdão comissionasse o promissor pintor para retratar a aula pública anual de anatomia, a cargo do Dr. Nicolaes Tulp, o praelector anatomiae. Membro influente daquela corporação, foi ele quem descreveu pela primeira vez a válvula ileocecal, que separa o intestino delgado do grosso. A dissecação de corpos humanos tinha sido regulamentada em 1555 por Filipe II de Espanha (I de Portugal), Senhor dos Países Baixos, que autorizou aquela guilda a efetuar, com fins didáticos, uma dissecação por ano, no corpo de um criminoso executado. Sabe-se, assim, que a aula decorreu no dia 31 de janeiro de 1632 e que o cadáver era de um homem conhecido por Aris Kindt, enforcado naquela manhã por roubo à mão armada. Para retardar a decomposição do corpo, as dissecações, que duravam vários dias, eram realizadas no Inverno.

Tulp é retratado com uma pinça na mão direita, a segurar um músculo do antebraço do cadáver. Após muita discussão e especulação sobre os possíveis erros anatómicos, parece haver um consenso crescente de que o músculo em questão é o flexor superficial dos dedos. O praelector anatomiae explica como esse músculo afeta os dedos, o que exemplifica com a sua mão esquerda. Assim, Rembrandt não retratou uma lição de anatomia descritiva ao estilo de Vesalius (que, apesar das inovações que introduziu, estava ainda ligado à medicina galénica), mas sim uma demonstração de anatomia funcional, seguindo as novas tendências da época. Com esta obra, o artista evidencia uma rutura epistemológica com o passado, assinalando a entrada na medicina moderna, de acordo com a nova filosofia mecanicista, que teve como principais protagonistas figuras como Galileu, Descartes e Newton. O mundo, concebido como uma grande máquina, podia ser explicado através de princípios mecânicos quantificáveis. Os próprios corpos dos animais eram sistemas mecânicos sujeitos às leis da física. Na medicina, tal mudança de paradigma teve efeitos imediatos: logo em 1628, William Harvey descreveu o mecanismo da circulação sanguínea.

Em 1656, o grande mestre da Idade de Ouro dos Países Baixos voltaria a abordar o mesmo tema n’ A Lição de Anatomia do Dr. Deijman. Entre nós, em 1914, Carlos Bonvalot pintou O Mestre, uma lição de anatomia do Professor Henrique de Vilhena na Faculdade de Medicina de Lisboa. Na atualidade, artistas como Katharine Dowson, Lisa Nilsson e Greg Dunn, que integram elementos anatómicos e biológicos nas suas obras, continuam a entrelaçar a arte e a medicina. Para isso, recorrem a imagens de órgãos e tecidos do corpo humano, obtidas através de técnicas de diagnóstico não invasivas como ressonância magnética, tomografia axial computorizada e tomografia
de emissão de positrões.

Químico