Quando o senhor Schmidt se levantou na terça-feira pela manhã fez uma coisa estranhíssima: no momento de dar o nó nos atacadores dos sapatos pegou numa pistola e deu tiros nos pés. Ninguém se não o próprio conseguirá explicar devidamente o que lhe terá passado pela cabeça. A noite foi, muito provavelmente, mal dormida. Afinal tratava-se de jogar em San Siro, contra o Inter, depois de já ter sido derrotado na Luz por aquela que (excetuando o Benfica, claro!) é a equipa mais frágil deste grupo, o Salzburgo. Mas, em seguida, o senhor Schmidt fez outra coisa realmente estranha: guardou a pistola no bolso das calças. Ainda tinha uns tiros para dar em si próprio ao longo de um jogo que podia mudar a história da sua equipa na Liga dos Campeões.
Como todos aqueles que viram atentamente futebol nos últimos cinquenta e tal anos, sou um dos aficionados do romantismo. Foram as equipas de rasgo ofensivo que se me encaixaram para sempre nos interstícios da memória e não as irritantes e calculistas como, e o exemplo vem a propósito, o Inter de Helenio Herrera que Mourinho copiou. Vamos e venhamos: ninguém quer saber do Inter que foi campeão europeu. Era um bocejo. Uma grandessíssima estucha, diria o Alencar do divino Eça. A recordação coletiva guardou-lhe os resultados mas atirou as exibições de nojento cattenacio para o balde do lixo da história do velho association. Talvez o senhor Schmidt tenha acordado com a convicção de que iria surpreender este Inter – com o qual na época passada se deu mal – ao jogar sem ponta-de-lança, retirando aos defesas italianos um indivíduo a quem marcar e apostando no movimento em carrossel de três avançados rápidos e móveis com Neres, Rafa e Di Maria. Se o pensou, melhor o fez. E a sua ingenuidade é de bradar aos céus!
No bolso!
A verdade dos factos foi dolorosa para o senhor Schmidt que já devia estar a sofrer com as dores dos tiros que resolveu dar nos pés. Os três avançados que deveriam saltar de surpresa por entre a defesa italiana como aqueles velhos bonecos do Jack-in-a-box, foram metidos nos bolsos dos seus adversários. Tirando algumas arrancadas de Neres, Rafa e Di Maria não se viram. E, como nenhum dos três tem cultura de defesa e nem sequer de ocupação de espaços defensivos, o Inter pôde ultrapassar a primeira barreira de jogadores do Benfica e jogar à vontade dentro do meio campo do campeão português, obrigando Neves e Aursnes a andarem por ali perdidos a apagar fogos atrás de fogos com Kökçü, como de costume, sentado na sua cadeirinha a ver o que se passava em seu redor.
Depois de uma primeira parte desinteressante, o Inter percebeu que podia jogar como queria e lhe apetecia porque tirando os tais dois infelizes do meio terreno encarnado ninguém se iria opor à sua vontade. Não fora Trubin e a goleada teria sido construída com uma facilidade incompreensível. No banco, com a pistola no bolso, o senhor Schmidt assistia ao afundar do navio vermelho com a mesma impassividade que todos lhe reconhecem. A próxima bala estava guardada para ser disparada não num pé mas na cabeça.
Quem teve a suprema paciência de ler o que aqui escrevi na passada semana, antes do jogo com o FCPorto (obrigado caro leitor, bem haja), continuo a estranhar como é que o Benfica se dá ao luxo de ter no onze principal tanta gente que não faz a mais básica das tarefas defensivas. Di Maria perde-se em truques que toda a gente já conhece com o problema de os executar a dez à hora; Kökçü não é, como costuma dizer o povinho, carne nem peixe – precisa de espaço e os opositores não lho dão e ele também não sabe ir procurá-lo nas costas dos médios adversários; Rafa está individualista como nunca. Não há um avançado-centro de jeito capaz de fazer o mínimo dos mínimos do que Gonçalo Ramos fazia. Sobra Neres, ainda assim o melhor de todos, embora nem sempre titular.
Ao ver o meio-campo do Benfica ser atropelado em San Siro sem apelo nem agravo por mais de uma vez me veio à cabeça a forma displicente como o senhor Schmidt tem, neste início de época, ignorado quase por completo aquele que é o verdadeiro motor defensivo da equipa, o equilibrador das falhas dos seus companheiros:Florentino. Um daqueles tiros que o treinador alemão deu nos pés e não falhou. Gostaria de ver um triângulo formado por Florentino, Aursnes e Neves e que dinâmica poderia oferecer na libertação dos jogadores mais ofensivos. Parece claro e límpido como os olhos da Elizabeth Taylor que há dois jogadores com um estatuto de intocáveis:Kökçü e Di Maria. O primeiro é um mistério completo de falta de capacidade competitiva; o segundo, à custa de dois golos ao FCPorto, disfarçou a sua debilidade física mas não consegue esconder a velocidade que já teve e perdeu.
Pode o senhor Schmidt jogar nas fraquíssimas competições nacionais dando-se ao luxo de ter dois ou três jogadores no conjunto que andem por ali a passear como garotos alegres em campos de papoilas e gipsofila, mas parece não ter percebido a diferença que existe entre a Liga Portuguesa e a Liga dos Campeões, algo que é grave se pensarmos que na época passada, com muito menos escolhas, fez um percurso garboso com futebol a condizer. Em apenas dois jogos, duas derrotas e nem um golo marcado. O futuro é negro para o Benfica e não é preciso ter dotes de adivinhação para se perceber que a jogar como o fez em Milão não tem qualquer hipótese de passar à fase seguinte – na realidade, e a opinião é minha, o seu destino já está traçado. Vá lá, com um pouco mais de competência, talvez garanta a Liga Europa. Ao fim ao cabo uma competição mais à medida da águia do suicidário senhor Schmidt, que num instante perdeu o crédito que tinha ganho.