‘Solo le pido a Díos que Bochini juegue para siempre…’

Roberto Bochini foi tão grande que até Diego Maradona o tratava por Maestro…

Ninguém imagina a história de Buenos Aires sem tango nem a história do Independiente sem Ricardo Enrique Bochini. Foram dezanove anos consecutivos e nunca Ricardo vestiu outra camisola. «Solo le pido a Dios/Que el dolor no me sea indiferente/Que la reseca muerte no me encuentre/Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente», cantava León Gieco. «Sólo le pido a Dios/Que Bochini juegue para siempre/Siempre para Independiente/Para toda la alegría de la gente», cantavam os hinchas do Independiente. No Campeonato do Mundo de 1986, no México, aquele em que Maradona resolveu defrontar Deus e ganhou, Bochini entrou a seis minutos do fim da meia-final frente à Bélgica. E então Diego disse-lhe: «Pase, Maestro, lo estábamos esperando…». E ele, modesto, sem querer reconhecer o gesto magnífico de Maradona: «Disse-me algo ao ouvido, mas não sei ao certo o quê… Não me lembro. Não teve importância…». Ricardo era assim. Erguia-se sobre os companheiros como um Ícaro de asas de cera mas nunca teve o desplante de querer tapar o sol.

Há tanta música em Buenos Aires. No futebol também. Avellaneda, cidade do Independiente, não é bem Buenos Aires, mas fica lá tão perto. Buenos Aires é uma boa cidade para se morrer, como escreveu Piazzola e cantou Amelita Baltar com a sua voz lavada a whisky: «Morire en Buenos Aires/Sera de madrugada/Guardare, mansamente, las cosas de vivir/Mi pequeña poesia de adioses y de balas/Mi tabaco, mi tango, mi puñado de splin». No dia 5 de maio de 1991, num jogo sem importância nenhuma contra os Estudiantes de La Plata, Bochini foi caçado a patadas com a ferocidade com que se persegue uma ratazana. Um mamífero de raça indefinida chamado Pablo Erbín enfiou-lhe os pitons da bota no calcanhar direito e destroçou-lhe os ligamentos. Nunca mais Roberto voltaria a jogar. A turba ululava numa espécie de mistura entre raiva e desespero: «Bo-chi-ni! Bo-chi-ni! Bo-chi-ni!».

Fora do campo, Bocha, com também lhe chamavam, foi sempre um indivíduo misterioso. Nunca se soube nada sobre a sua vida privada. Não gostava de dar entrevistas. Não emitia opiniões. Ninguém sabia se gostava do Papa, se era contra a morte assistida ou a favor da interrupção voluntária da gravidez, ou se, nem que por instantes, ficou encantado por Evita, a rainha dos descamisados. Constava-se que, nos finais dos anos 60, uma vedeta dos musicais, mulher fatalíssima, lhe matara todos os sonhos. A relação romântica que exibia em frente de toda a gente era com a bola. Em 1976, durante uns meses, surpreendeu toda a Argentina abandonando o futebol. Refugiou-se em Zarate, a terra onde nasceu, e fechou-se em casa da família. Ou melhor: fechou-se sobre si mesmo.

De um dia para o outro voltou sem explicações, tal como tinha partido. «No pasó nada. Estaba mal anímicamente, y físicamente muy agotado», foi a sua frase mais drástica. Inventaram que tinha um cancro, que estava acabado de vez, que não voltaria s ser Bochini. Mas o povo estava com ele. Levou-o aos ombros até ao lugar que lhe pertencia, líder da equipa que contra o poder de Córdoba, uma das cidades que veio a receber o_Mundial de 1978, queria fazer do seu clube, o Talleres, campeão nacional. O jogo decisivo foi terrível, digno de uma cena de ciúme entre Otelo e Desdémona. Na segunda mão, em Córdoba, o Independiente precisava de ultrapassar o empate de 1-1 em Avellaneda mas o arbitro, Barreiro, fez tudo o que pôde para que o Talleres ganhasse, até mesmo validar um golo escandalosamente marcado com a mão pelo avançado Bocanelli. O capitão do Independiente, Rubén Galván, deu-lhe uma peitada macha: «Tengo dos hijos y esto me da vergüenza. Écheme!»._Barreiro fez-lhe a vontade à conta de um cartão vermelho. Bochini fervia de injustiça. Pastoriza, o treinador, chamou-o e colocou-lhe a mão no ombro: «Tranquilo, Bocha, tranquilo…». Vida difícil. 2-1 para o Talleres e mais dois jogadores do Independiente expulsos. 11 contra 8. «Ladrones, ladrones/Así salen campeones», gritava-se do lado dos vermelhos._Aí Bochini resolveu valer por todos. Aos 84 minutos, a passe de Daniel Bertoni chutou com tanta violência que a bola bateu na barra, rechaçou no solo e voltou a subir desta vez para acertar nas redes superiores da baliza adversária. «Fue el gol que más grité en toda mi vida!», desabafou no fim. Uma loucura invadiu a zona das bancadas onde se amontoavam os adeptos do Independiente: «Eh, chupe, chupe, chupe/No deje de chupar/El Bocha es lo más grande/del fútbol nacional!». Podia não ser um tango, mas também não deixava de ser um grito de liberdade.

afonso.melo@newsplex.pt