A sua música é de quem não se conforma, no entanto não gosta de dizer que é uma artista de intervenção. Descreve-se como uma pessoa que «gosta de escrever canções». Chama-se Cátia Oliveira, mas o público conhece-a por A Garota Não.
No domingo passado, a sua voz ecoou no Coliseu dos Recreios, depois de ter vencido o galardão de Melhor Intérprete na 27ª edição da cerimónia dos Globos de Ouro, transmitida na SIC.
Ao subir ao palco para receber o prémio, a cantora natural de Setúbal pediu a atenção do público para ler um poema escrito por si. Além disso, para não ser interrompida pela banda – o que acontece quando os vencedores prolongam os discursos mais do que o tempo estipulado -, A Garota Não dirigiu umas palavras ao maestro, recebidas com sentido de humor. «Eu sou do 2 de Abril, que é um bairro lixado em Setúbal. Espera só um bocadinho até ao final». Desde então, o poema tem circulado nas redes sociais com muita gente a aplaudi-lo e a emocionar-se.
«Vivemos o tempo dos Budas, das flores de plástico e das cómodas douradas/ E rimos muito alto, por cima da música alta das esplanadas/ Vivemos o tempo da kombucha, do coaching, das soft skills e da gratidão/ Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação/ Vivemos o tempo mais corrido de sempre/ Das metas, dos objetivos, do ‘nem que me esfarrape’/ Não há esforço que não valha a pena, seremos todos Luft, Tap/ Vivemos tempo de maioria absoluta, de posso e mando, de meritocracia/ O mérito mede-se a partir dos dentes, das notas do colégio ou da demagogia?/ Obrigada por esta oportunidade, um globo de ouro nas mãos de um ser tão falho/ Há quem tenha muita sorte/ A sorte, a mim, tem-me dado muito trabalho», disse a cantora ao microfone.
Do bairro para o mundo
Cresceu rodeada de música: «No rádio de casa, nos passeios de carro, no prédio onde cresceu», conta no texto de apresentação que escreveu para o seu site oficial.
No seu bairro os vizinhos ouviam música alta, «naquele volume que atravessava paredes, patamares inteiros». Ouvia de tudo… De Gipsy Kings a música eletrónica, passando também pelos ritmos africanos. «O meu prédio era um verdadeiro território intercultural», garante.
Além disso, as mulheres da sua família «também sempre tiveram o hábito de cantar». Já o seu pai fazia questão de partilhar consigo o seu gosto pela cultura, desde o cinema, ao teatro e à música. Trazia no peito o sonho de liberdade, dando-lhe a conhecer Zeca Afonso e as músicas de intervenção.
Em várias entrevistas, já lembrou que foi aos 10 anos que aprendeu um pouco de piano, aulas que teve de abandonar pouco depois pela logística familiar. Quando a professora soube a razão de ter deixado de aparecer, ofereceu-lhe as aulas. Mas Cátia não queria ser a aluna que não pagava. «O meu pai nunca me deu ténis de marca mas sempre teve a visão de que conhecimento é a maior herança que se pode deixar», aponta na sua biografia.
Durante o seu crescimento, sempre viu «coisas erradas», que lhe faziam mal. «Fui precisando de criar outras realidades para suavizar essas coisas que a história do bairro me dava. A música serviu muito esse propósito. Os bairros sociais eram minados de seringas. Era dramático. Se uma criança cresce nesse ambiente é impossível não ser influenciada por ele», revelou numa entrevista ao SetentaeQuatro.
Pouco depois do piano, veio a guitarra e as primeiras composições com amigos. «E tem sido assim: venho de um dos fins do mundo de pé descalço e com muita vontade. Toco guitarra, piano e percussões. Mas pouco. Gosto de cantar e sobretudo gosto de escrever», explica no seu texto.
A origem do nome artístico
Mas de onde surge o nome A Garota Não? Segundo a artista, esta teve um período em que fez um circuito de concertos de jazz. Nessa altura, contou ao Público em 2020, procurava levar um repertório fora do que era mais conhecido, como a Garota de Ipanema ou Águas de Março, «temas sobre os quais não tem nada de novo a acrescentar». Num desses circuitos, onde a banda percorreu uma série de adegas, havia um senhor numa mesa que, a cada tema que a cantora cantava, dizia: «Toca a Garota de Ipanema!». «Já no final, como o senhor voltou a impor a sua vontade, eu disse: ‘A Garota não, por favor. Pode ouvir esse tema em elevadores, em esplanadas, em mil coletâneas de música brasileira, eu não tenho nada a acrescentar’. E foi uma reação curiosa, a do resto do grupo que estava ali», acrescentou.
Foi em 2019 que lançou o seu primeiro disco, Rua das Marimbas n. 7, primeiro difundido nas plataformas digitais e depois nas lojas em CD, com um acabamento incomum, artesanal, dando singularidade a cada um. Três anos depois, nasceu o 2 de Abril – nome do bairro onde nasceu e dia em que a Constituição da República Portuguesa foi aprovada em plenário da Assembleia da República.