Quando há cerca de um ano e meio escrevi o livro intitulado Reforma Necessária do Sistema de Saúde Português não podia imaginar que o diagnóstico que então fiz se viesse a tornar tão profético: a falência clamorosa do nosso sistema público de saúde. Poderíamos tentar rever aqui as razões que nos conduziram, ao longo dos anos, à situação presente: vieses ideológicos, teimosia política, financiamento deficiente, investimento escasso, gestão inapropriada, clamorosa falta de planeamento e uma total incapacidade de entender o ecossistema da saúde como um sistema interligado, adaptativo e complexo. Estas falhas, que foram de visão e de coragem política, mas não menos de clamorosa incompetência técnica, tiveram, como é costume, muitos autores anónimos, mas um resultado que está hoje bem identificado: a falência do sistema de saúde nos limites do que se avizinha o seu ponto de não retorno!
A premência das respostas desaconselhará o escrutinar de análises causais para a situação atual e muito menos recomenda o apuramento de responsabilidades, coisa inútil e difícil entre nós, sobretudo se forem políticas…
A questão que interessa agora será saber como emergir desta situação, e o caminho é a reforma profunda do sistema de saúde, reforma que teremos agora de levar a cabo em situação de crise e condicionados pela urgência. A coragem para a fazer já não colhe os méritos da iniciativa pensada, mas impõe-se urgente pela necessidade do momento. É nestas alturas que precisamos de quem tenha uma visão, de quem tome decisões e de quem saiba e possa liderar uma mudança. Se poderemos até ter quem o faça, e com competência reconhecida, também sabemos que o homem é também a sua circunstância, no chronos e no kairos que lhe permitam ações reformistas; condições sem as quais tantos líderes competentes sucumbiram já na praia das reformas falhadas. A situação presente parece impor uma atuação em dois tempos: primeiro, garantir uma resposta imediata, talvez recorrendo a toda a capacidade instalada no nosso parque de saúde – pública, privada e social, num pacto colaborativo, responsável e patriótico a que nenhum player – profissionais, gestores, organizações prestadoras – se deverá eximir. Num segundo tempo, importará reformar profundamente o sistema de saúde para o futuro.
Permito-me deixar aqui dez linhas fundamentais para a reforma da saúde em Portugal:
I. Serviço nacional de saúde como trave-mestra do sistema de saúde, prestando cuidados adentro da sua capacidade total instalada, mas no conceito de ‘menos Estado com melhor Estado’.
II. Sistema de saúde integrado: público, privado e social, funcionando em rede com livre acesso e escolha pelos cidadãos e sem transferência de doentes com base na complexidade. Prestação contratualizada, controlando o acesso e a qualidade.
III. Reforço do papel regulador do estado, preservando a cobertura universal e o acesso com plena equidade e impedindo a discriminação económica ou por risco.
IV. Saúde familiar reforçada e sendo a base referenciadora para o sistema hospitalar. As ULS e os hospitais regionais deveriam estar interligados, mas os hospitais centrais e os especializados deveriam ficar resguardados e reforçados na sua capacidade técnica para a resposta aguda e tecnicamente mais exigente.
V. Ênfase nos estilos de vida saudável, na prevenção da doença e na saúde pública.
VI. Abertura da capacidade hospitalar total pela dotação adequada de staff e equipamento. Abandono de esquemas de trabalho por tarefa, extraordinário ou de produção adicional, que deveriam assumir caráter absolutamente excecional.
VII. Foco no pessoal técnico de saúde, pois nenhuma reforma se fará sem eles e muito menos contra eles. Foco nas carreiras, no reforço das lideranças profissionais perdidas, na remuneração pelo mérito, mas também baseada em projetos e assente no reconhecimento. Em suma, empowerment dos profissionais.
VIII. Modelo de gestão, macro e intermédia, com autonomias reforçadas, baseado em métricas de valor e na remuneração pelo mérito. Autonomia e agilidade nas contratações e nas compras, transferindo responsabilidades para as chefias.
IX. Levantamento nacional das necessidades em pessoal e meios e planeamento adequado da carta de cuidados de saúde. Atuações setoriais em conformidade.
X. Valorização do ensino e do treino médicos, considerados agora como mais uma ‘linha de produção’ em saúde, nomeadamente na afetação de tempo protegido para ensino e investigação clínica. Revisão do estatuto e funcionamento dos centros clínicos académicos, que interessará proteger a todo o custo. Para que não se comprometa mais a formação, que consideraremos como um investimento.
As reformas verdadeiras exigem coragem e não dispensam lideranças, e as reformas feitas sob a pressão de crises são mais desafiantes, contêm maiores riscos, mas são as que aportam maiores benefícios, sobretudo se forçadas pela emergência.
A situação a que chegámos no SNS, e que facilmente se alastrará a todo o sistema fortemente comunicante da saúde, é muito grave e não se resolverá mais com medidas de ordem organizativa, de base setorial, nem tão pouco se atenua com injeções de mais capital… A reforma terá de fazer-se para os doentes, mas não poderá ignorar ou maltratar os players técnicos principais da saúde, goste-se ou não, os médicos. A história passada mostra não ser prudente ignorar todos estes factos e, para quem já o esqueceu, a realidade virá mostrar em breve que muitos de nós conhecedores profundos do sistema, tínhamos, afinal, razão. Só que poderá ser já tarde de mais e muitos doentes terão sofrido desnecessariamente.