No tempo em que a Inglaterra tinha um rei que metia nojo

Ao fim de muitos anos, os ingleses estão a reabituar-se a ter um rei. Carlos III pode não ser um fenómeno de popularidade mas pelo menos não parece correr o risco que correu George IV cuja devassidão, irresponsabilidade e contínuas doenças o atiraram para um patamar que fez estremecer os alicerces da monarquia.

Carlos III, popularmente O Orelhas, pode não ser um dos mais queridos reis da velha monarquia inglesa, mas também não entra na lista dos mais desprezados. Chegou ao trono em idade adiantada mas, se tiver herdado a capacidade materna de se manter vivo, vai lá ficar sentado mais uns bons pares de anos, e calha aqui que nem ginjas para escrever uma crónica sobre um tal de George IV, muito provavelmente, o Rei de Inglaterra que meteu mais nojo ao povo quase por inteiro. Por culpa própria. A sua imemorial estupidez fez com que, depois de substituir o pai, George III, por via da doença mental que atacou este último, desperdiçasse todo o seu manancial de charme e cultura que levou alguém a apelidá-lo de O Primeiro Cavalheiro da Inglaterra. Se o poder corrompe, eis um bom exemplo.

George era um apreciador das coisas belas da vida, principalmente comida, bebida e mulheres. Chegou a pesar 17 stones e 7 pounds, significando cada stone 14 avoirdupois pound, ou seja cerca de 111 vulgaríssimos quilogramas no total de Sua Majestade. Prometido desde infância à sua prima Caroline Amelia Elizabeth Brunswick-Wolfenbüttel, foram apresentados pela primeira vez na véspera da boda. E que boda! Caroline, com um desprendimento puramente germânico, tratou de afirmar em voz alta a sua desilusão perante a figura rotunda do seu noivo. Quanto a George IV, parece que correu apressadamente para o seu camareiro-mor e não descansou enquanto não ingeriu um grande copo de brandy para se recompor do choque que o abalou até aos alicerces: a sua futura esposa era o ser humano mais feio que alguma vez tivera o desplante de lhe dirigir palavra.

É em situações como esta que a valentia de um inglês se revela: George Augustus Frederick, nesse tempo ainda apenas Príncipe de Gales, apresentou-se na cerimónia absoluta e corajosamente embriagado e até certo ponto casado. A sua pretensa mulher chamava-se Maria Anna Fitzherbert, dupla e convenientemente viúva e inconvenientemente católica.

Os ingleses são tão religiosos por convicção que não satisfeitos com as Igrejas alheias criaram uma Igreja para si próprios. E o Royal Marriages Act de 1772 é bem claro na proibição dos casamentos entre candidatos ao trono e senhoras de duvidosa educação católica apostólica e romana. Por isso, apesar de amancebado com Mrs. Fitzherbert, que continuou a beneficiar de generosas prebendas ao longo da sua vida, desposa a horrível Brunswick da qual dirá, após a tortura da noite de núpcias:

My wife stanks!

Concebida uma herdeira, a princesa Charlotte, o futuro George IV tratou de voltar para os lençóis bem mais lavados e cheirosos de Mrs. Fitzherbert. No dia da sua coroação, recusou-se a ter entre os presentes a fedorenta Caroline de Brunswick como se esta não fosse mais do que uma camareira de segunda apanha.

A obesidade galopante tornou George ridículo e praticamente imóvel: sofria de gota, de cataratas, de aterosclerose e a morte não terá passado de um alívio deste conjunto de maladias. Apesar de ter sido considerado por muitos como o First Gentleman of England, graças ao seu estilo e boas maneiras, George IV não escapou à língua afiada do Duque de Wellington, sempre disposto a apequenar o próximo: «Foi o pior homem que alguma vez conheci, o mais falso, o mais doentio, o mais egoísta, e não consegui descobrir-lhe uma única qualidade capaz de o redimir». E concluía: «He would always prefer a girl and a bottle to politics and a sermon», como se isso fosse basicamente um defeito.

A coragem de George

Há que dizer que a coragem de George IV me parece indesmentível; quanto à de Wellington, vá lá saber-se porquê, Conde de Vimeiro, Marquês de Torres Vedras e Duque da Vitória já confesso as minhas reservas.

Apesar da sua feiura e do facto de ser alemã, Caroline de Brunswick manteve uma vida amorosa quase tão ativa como a do marido, embora sempre a negasse. E quando George IV pretendeu desacreditá-la, mandando levar a cabo um exaustivo inquérito sobre os seus comportamentos de alcova com senhores low-born, não hesitou em responder:

  • I had indeed comitted adultery with one man: the husband of Mrs. Fitzherbert.

Ou seja, o próprio Príncipe de Gales.

Caroline veio a morrer pouco depois desse desagradável episódio de ter sido barrada à entrada da Abadia de Westminster na cerimónia da coroação. Os médicos detetaram-lhe uma obstrução intestinal, o que pode ajudar a compreender as recriminações de George IV, tanto em relação aos seus traços faciais como em relação aos seus odores corporais.

A originalidade do pecado

Os ingleses têm uma certa inveja dos irlandeses e resumem-na numa frase simples: «São católicos. Por isso, pecam». A partir daí a desconsideração que têm pelo chamado pecado original prender-se-á com o facto de raramente um inglês considerar original algo que não é protagonizado por um súbdito de Sua Majestade. Desprezam igualmente os sagrados sangues da soi-disant Virgem Maria, que não era definitivamente súbdita de ninguém – para eles só existiu uma verdadeira Maria Sangrenta, Bloody Mary, Maria I, filha única de Henrique VIII (da primeira das suas seis mulheres, Catarina de Aragão), e testemunha viva da secessão da Igreja Anglicana. Por seu lado, há quem garanta que a Mary que inspirou o sangrento cocktail do mesmo nome foi a atriz canadiana Mary Pickford, née Gladys Louise Smith, talvez por ter o cabelo arruivado ou, se calhar, por ter falecido a contas com uma abundante hemorragia cerebral, o que também lhe abalou fortemente os sangues, convenhamos. Em todo o caso, a história completa-se: basta não juntar qualquer tipo de álcool ao sumo de tomate temperado com sumo de limão e tabasco e obtém-se um desinteressante Virgin Mary.

Como se depreende pelo cuidado que George IV revelava na investigação dos amantes low-born da sua medonha consorte, os ingleses sentem que devem ter uma palavra a dizer sobre quem reparte do leito com os seus cônjuges. O que é perfeitamente legítimo numa sociedade de costumes tão conservadores. Com naturalidade, o seu cérebro começou a pregar-lhe partidas e acordava frequentemente com terríveis enxaquecas. Às 3h30 da manhã do dia 26 de junho de 1830 soltou um grito lancinante: «My God what is this!?». Era a morte.