Quase todo o seu trabalho tem algo de autobiográfico, mas tão exagerado e distorcido que lhe parece «ficção». Woody Allen não faz filmes sobre coisas do momento, as suas obras não puxam por temas sociais e políticos. Mas sim por questões psicológicas, românticas e existenciais.
Mantendo uma média impressionante de um filme por ano há décadas, já disse que por mais longa que a sua vida «nunca teria tempo de escrever todas as ideias» que tem na cabeça. «Eu não quero alcançar a imortalidade através do meu trabalho. Quero alcançá-la não morrendo», afirmou várias vezes ao longo da sua carreira.
O realizador que muitos reconhecem como um génio não se considera um «artista» mas sim «um sortudo viciado em trabalho». O seu 50.º filme, justamente intitulado Golpe de Sorte, estreou-se no dia 5 de outubro e pode bem ser a sua última obra.
Com atores franceses e rodado totalmente em francês, a capital francesa foi também a escolhida para cenário do 50.º filme da carreira do realizador norte-americano de 87 anos que já venceu quatro Óscares em 23 nomeações.
Protagonizado pelos atores Lou de Laâge, Valérie Lemercier, Melvil Poupaud e Niels Schneider, o enredo centra-se em Fanny, que está casada e feliz ao lado do marido, um milionário que ninguém percebe bem como enriqueceu, até ao dia em que se cruza na rua com um antigo colega de escola. Daí em diante vemos desenrolar-se uma história sobre ciúmes, poder, romance e infidelidade conjugal, onde o acaso e as coincidências têm um papel determinante.
Segundo a CNN, apesar de não dominar o francês, Woody Allen não hesitou em rodar um filme inteiramente falado nessa língua. «Quando vemos um filme japonês, podemos dizer se a atuação é boa, realista e natural ou se é dramática ou muito exagerada», explicou. «A mesma coisa aqui. Eu poderia dizer pela linguagem corporal e pela emoção dos atores, mesmo sem entender a língua, quando eles estavam a ser realistas ou não». Na apresentação, em Veneza, o realizador reafirmou a sua paixão pela Europa e pelo cinema europeu. «Quando era mais jovem, os filmes que mais nos impressionavam quando estávamos todos a começar e sonhávamos ser cineastas eram os do cinema europeu, todos os filmes franceses, os filmes italianos, os filmes suecos», disse, admitindo que «todos queriam fazer filmes como os europeus». O seu amor pelo cinema europeu é retribuído: relativamente pouco popular nos EUA, Allen é considerado um ídolo sobretudo na Europa.
Afastar-se do cinema?
Embora não seja a primeira vez que coloca essa hipótese, o realizador já afirmou que este poderia muito bem ser o seu último filme. Numa entrevista recente ao Expresso, disse estar cansado de correr atrás de financiamento, e que, se dependesse só de arranjar histórias, não faltariam filmes: «Ideias não me faltam. Já fiz 50 filmes, talvez pudesse fazer 75». À Variety já havia admitido que tem muitas ideias para filmes, «caso fosse fácil de os financiar». «Contudo, além deste fator, não sei se tenho a mesma disposição para continuar a gastar tempo e a juntar dinheiro nestes projetos», reforçou.
No ano passado, numa entrevista ao diário espanhol La Vanguardia, também já tinha dado pistas sobre uma possível mudança de foco: «A minha ideia, em princípio, é deixar de fazer filmes e concentrar-me na escrita». No mesmo ano revelou que só faria «mais um ou dois filmes», uma vez que perdeu «a emoção» e que fazer filmes «já não é divertido».
De génio a cancelado
A carreira e a imagem pública de Allen são há anos ensombradas pelas acusações (que remontam aos anos 90 mas que ganharam nova visibilidade com o movimento #MeToo em 2017) de abuso sexual por parte da sua filha adotiva com Mia Farrow, Dylan Farrow. Em 1992, quando tinha apenas sete anos, Dylan acusou o pai de a ter agredido sexualmente. De acordo com a CNN, as alegações foram investigadas duas vezes, mas nenhuma acusação foi apresentada e Woody Allen reclamou sempre a sua inocência.
Ao longo dos anos, os efeitos dessas acusações têm-se feito notar na redução do apoio da indústria cinematográfica, sendo a consequência mais evidente a saída da Amazon Studios do contrato que tinha com o cineasta para quatro novos filmes, no valor de 68 milhões de dólares, o que afetou a produção e a distribuição das suas obras mais recentes. Tornou-se cada vez mais complicado trabalhar nos EUA e, muitos atores e atrizes simplesmente deixaram de querer ser as estrelas dos seus filmes.
No último Festival Veneza, onde Golpe de Sorte foi aplaudido pelo público de pé durante cinco minutos, lá fora o cenário era muito diferente. Em frente à sala de cinema, um grupo de manifestantes protestava contra «a cultura de violação». Grandes faixas revelavam frases como: «Ilha de violadores» e «Não há leão de ouro para predadores». O objetivo seria protestar não só contra a presença de Allen, mas também de Roman Polanski.
Este ano, sobre essas acusações e interrogado pela Variety se se sente «cancelado», Woody Allen respondeu: «Acho isto tudo simplesmente ridículo. Não penso nisso. Não sei o que significa ser cancelado. Ao longo dos anos tem sido tudo igual para mim. Eu faço os meus filmes. A minha rotina é a mesma. Eu escrevo o argumento, angario o dinheiro, faço o filme, edito e ele estreia. A diferença não vem da cultura do cancelamento. A diferença está na forma como apresentam os filmes. É essa a grande mudança», disse, referindo-se ao surgimento das plataformas de streaming e ao facto dos filmes ficarem pouco tempo nas salas de cinema. «Fiz 50 filmes. Sempre tive papéis muito bons para mulheres, sempre tive mulheres na equipa, sempre lhes paguei exatamente a mesma quantia que pagávamos aos homens, trabalhei com centenas de atrizes e nunca tive uma única reclamação de nenhuma delas em nenhum momento. Ninguém disse: ‘Trabalhar com ele foi mau ou ele assediou-me’», afirmou em sua defesa.