Há dias assim: como se fossem romarias às almas de amigos antigos que já partiram para não mais voltar. Almocei na Tia Matilde, atacou-me aquele vazio de o Ti’ Emílio não estar se não nas recordações de fotografias e recortes de jornais pelas paredes. Romagem de saudade a um lugar que frequentei durante bem mais de trinta anos e que tanto está ligado ao meu trabalho e à minha vida. Voltei a casa com um peso no peito e sentei-me para escrever com outro peso no peito de saudades do meu tão querido Francisco Oliveira que fez do Farta Brutos um lugar popular como poucos, ali mesmo ao Bairro Alto, na Travessa da Espera, rua onde vivi durante três anos. Tínhamos nele, como na Tia Matilde, tertúlias infinitas embora com pessoas diferentes. O Senhor Oliveira, como sempre o tratei, inventou mesas personalizadas com os nomes dos clientes em azulejos, e a mesa do José Saramago tornou-se um mito. Quando não jantava lá, como um verdadeiro bruto, mais a minha caterva de amigos próximos, ou quando não almoçava com um grupo que se tornou especial de aguedenses: o meu pai, o meu tio Henrique, o Manuel Alegre e os filhos, Duarte e Afonso, o Paulo Sucena e o José Manuel Mesquita que se transformou numa espécie de cidadão emérito de uma Águeda que só resiste na nossa memória, sentava-me na mesa personalizada da drª Margarida Ribeiro dos Reis, dona de A Bola, que fez sempre o favor de ser uma companhia muito querida, até porque odiava almoçar sozinha. Nessa altura o senhor Oliveira sofria o medo de que o Farta Brutos morresse consigo. Por vezes queixava-se de que o filho, Rogério, não seria capaz de se agarrar ao restaurante como ele, que acabaria por fechá-lo e por pôr um ponto final na obra da sua vida. Quando conheci o Rogério percebi o porquê do medo. É um jovem com ideias, com projetos e objetivos que ultrapassam os limites das quatro paredes de um restaurante por mais gente famosa que franqueiem aquelas portas que contam muito da História de Portugal. No entanto manteve-o vivo.
Um dos projetos do Rogério Oliveira está em marcha. Um CD de originais contando os momentos vividos antes, durante e depois do 25 de Abril. Apoiado pela Antena 1 e pela Sociedade de Autores Portugueses, está dividido em dez capítulos-histórias. Gravado no Estúdio Vale de Lobos, produzido por José Salgueiro, tem arranjos e direção musical de Marco Ferreira. Mas o personagem mais abrangente é o próprio Rogério, omnipresente mas acompanhado por convidados especiais: Joana Serra (coros); Marco Ferreira (piano e concerto); Hélia Sila (em acordeão), José Manuel Santos (coros), Inês Peixinho (flauta transversal), Ricardo Duarte (baixo elétrico). Mais especiais ainda, se tal é possível, com o grande Fausto a participar em Dias e o Zeca Medeiros na Míope Luneta.
Tanta gente, tanto esforço coletivo e tantas cabeças a pensar nas abordagens ao 25 de Abril e aos meses que o anteciparam e sucederam, tem de assumir a diversidade. Mas ao mesmo tempo, a unidade da obra é garantida pelas composições ligadas pelo autor das letras, Rogério Oliveira. Catorze temas à escolha – A Meridional da Europa;_A Bem da Nação; O Imaginário Submarino Vermelho; Com Passaporte de Coelho;_Esgueiro-me em Repasseado; Balança Bem o teu Lenço; A Guerra e os Cardos;_O Prelúdio da Mudança; Precípuo Dia Hasteado;_De Cravos Celeste; A Míope Luneta; Zira; A Retorna e Génese. Não deixa de ser curioso que Génese seja o fim do disco. Como se esperasse renascer ao mesmo tempo. As palavras são duras, quase ácidas: «Haverá quem sempre queira ter inteira/Plena com que tudo o que ter assim abarca/ Derradeira, protectora e mãe solteira/ Sem ter Homem que te dome, patriarca». Uma ponta de desilusão. O Rogério diz: «não é um disco sobre o 25 de Abril em si, é um disco sobre o antes do 25 de Abril, o durante e o depois porque a nossa geração viveu esses momentos com muita sedução, com um entusiasmo enorme. Nós vimos o fim da PIDE». E, por isso lê-se: «Passando um mau bocado, renegados assim pelas duas gentes/ Mulheres e homens, perdidos e achados, suspensos, pendentes».
O melhor conselho é que o ouçam. Letra e música…