Bobos e bufões: hoje são muito bem pagos para darem bitaites nas televisões. Falam de cátedra. De tudo o que não sabem. Ventos dos tempos. Basicamente, ao contrário, Nicolau Ferriol, natural de Blois, em França, fartou-se de dar ao canelo para ganhar emprego e estatuto. Depois sim, podia dizer o que quisesse. A malta ria-se. Ria-se muito. Ao vermos os nosso bufões televisivos – alguns deles, mais reservados, com medo que lhes topem os focinhos na rua, ficam-se por rabiscos nos jornais dando tratos de polé à gramática e à sintaxe – não podemos deixar de valorizar o tal de Nicolau que ficou para a história com a alcunha de Triboulet. Note-se que, no início da idade adulta, era um indigente e um vadio. Mas um indigente bem disposto. Passava os dias às gargalhadas, muito provavelmente porque estoirava o dinheiro das esmolas em quartilhos de vinho. Mas, atenção! O mamífero não era um pedinte passivo. Isto é, metia-se com os passantes e contava pilhérias, geralmente maldizentes, sobre algumas das famílias mais influentes de Blois. Mesmo sabendo-se aldrabados pelos boatos de Nicolau, os transeuntes sacavam das suas moeditas e aí ia ele direitinho para a taberna.
Se julgam que Ferriol era algum papalvo, tirem daí a ideia. Fazia-se de parvo mas não era esparvoado de todo. De tal ordem que, certo dia, tendo conhecimento da visita a Blois do eminente fidalgo Duque de Angoulême, o futuro rei de França Francisco I, se colou à sua comitiva como uma lapa vomitando graçolas em catadupa à espera de uns segundos de atenção de sua senhoria. Debalde. O duque era um trombalazanas e nem ergueu os cantos da boca numa amostra de sorriso, isto a despeito de Nicolau ter arrastado pela lama à conta de dichotes toda a gente da cidade e arredores e até meia dúzia de parisienses do círculo de amigos do futuro rei.
Eis que Ferriol se irrita com o desprezo. Num gesto temeroso, sacou de uma navalhinha e foi-se aos fagotes do duque, não para lhe causar dano físico, mas apenas para lhe rasgar o peitilho deixando-o desconfortavelmente de mangas soltas e pescoço a descoberto. Se queria fazer-se notar, conseguiu-o. Os soldados do fidalgo pegaram-no pelo pescoço, levaram-no para uma floresta vizinha, dependuraram-no numa árvore de cabeça para baixo e entretiveram-se como miúdos queimando-lhe as plantas dos pés e enfiando-lhe pregos nas orelhas, algo que hoje os nossos jovens fazem por gosto ou por vaidade, mas que à época de Nicolau era bastante humilhante. Se ficaram com pena do bufão não percam tempo. Foi a sorte dele.
Como gritava Triboulet!!!
Ferriol abriu as goelas e começou a berrar como um cabresto. Tinha boas cordas vocais e uma voz sonora. Toda a gente nas redondezas escutou as suas imprecações e a sua choradeira, até mesmo o rei de França em vigor, o autêntico, Louis XII, que mandou investigar o que se passava. Nicolau foi chamado ao palácio e começou a descrever as suas aventuras de forma tão caricata que sua majestade se rebolou a rir. E, ali mesmo, o nomeou bobo da corte. O Duque de Angoulême que engolisse a desfeita nem que fosse à custa de uma dezena de copos de orchata.
O aspeto físico de Ferriol, ou Triboulet, como passou a ser chamado, era grotesco: uma testa enorme que parecia o mapa do Canadá, uns olhos porcinos, um nariz abatatado de narinas largas e uma cara redonda na qual despontavam pelos esparsos. Falava com uma graça natural, tratou de arranjar um chapéu tricórnio com guizos nas pontas e uma farda parecida com as da Guarda Suíça do Vaticano e andava pelo palácio à sua vontade misturando boatos com meias verdades, criando mau ambiente entre os habitantes da corte, e libertando-se de sarilhos porque caíra no goto do rei que estava disposto a perdoar-lhe tudo e mais alguma coisa. Certo dia, Triboulet correu ao encontro de Louis XII com o rabo entre as pernas, aflito e verdadeiramente horrorizado. Um marquês qualquer, chateado com um dos seus chistes maldosos, ameaçou passar-lhe a espada pelo pescoço. O rei não quis nem saber: «Triboulet, meu amigo, se alguém algum dia te fizer mal podes estar certo que quinze minutos depois está a dar com os costados na cadeia». E o bobo que, como já disse, não era parvo nenhum: «Se sua majestade pudesse mandar prender este uns quinze minutos antes de ele me matar em vez de quinze minutos depois é que me dava um jeitão».
Nicolau Ferriol, aliás Triboulet, ganhou uma fama extraordinária. A tal ponto que faz parte da literatura francesa, algo nada desprezível para um simples bufão. Por exemplo, Rabelais, o autor de Pantagruel e Gargântua, encaixou-o no Tiers Livre des Faits et dits Héroïques du noble Pantagruel: composés par M. François Rabelais, Docteur en Médecine, et Calloier des Iles d’Hyeres. Triboulet surge a largar patacoadas sobre a nobre instituição do casamento. Já o grande Victor Hugo foi mais longe: fez de Triboulet a personagem principal de Le Roi s’Amuse. Através da voz do bobo, o autor exprime as suas críticas mais verrinosas sobre os defeitos da sociedade francesa da época. Fosse com a voz de Triboulet ou não, a peça de teatro caiu em desgraça e foi proibida logo no dia seguinte à estreia. Não abundava a democracia no país governado por Francisco I que sucedera, entretanto, ao bem mais disposto Louis XII. A censura chegava a toda a parte e o bufão da corte deixara de ter a liberdade de antigamente.
Nem sequer Francesco Maria Piave, um libretista italiano muito próximo do compositor Guiseppe Verdi ficou alheio aos encantos ainda que misteriosos do bufão dos reis de França. De certa forma, reencaminhou a trama do Le Roi s’Amuse para a corte fantasiada do Duque de Mântua na qual o bobo, Rigoletto, sofre a sua desdita de ser obrigado a fazer rir aqueles cujas mãos lhe dão de comer. O duque era uma alusão ao período em que Francisco I fora um duque mal encarado e sem sentido de humor. Continuou a sê-lo o resto da existência mas a paciência para com Triboulet chegou ao ponto de esgotamento que o levou a condená-lo à morte por ofensas à rainha. Chamou-o, mandou-o ajoelhar-se e perguntou: «Triboulet, escolhe a maneira como queres morrer!». Sem esboçar um sorriso, o bufão respondeu: «Par Sainte Nitouche et Saint Pansard, patrons de la folie, je demande à mourir de vieillesse»._O rei encolheu os ombros e fez-lhe a vontade. Nicolau Ferriol morreu de velho mas em muito mau estado. Sempre foi um abusador.