Dia Mundial do AVC. “Nunca esperei passar por isto”

Mário Marques teve um AVC e Lucie Barreira uma trombose venosa cerebral severa. A tia de Isabel Martins sofreu dois AVCs hemorrágicos e acabou por falecer. O médico neurologista João Sargento Freitas e a psicóloga clínica Anabela Liberato falam sobre esta doença, que é a principal causa de morte em Portugal.

A 13 de janeiro de 2016, a família Marques viveu um dia que ficará para sempre na sua memória, especialmente na de Mário, de 66 anos, e Afonso, de 26. Mário recorda que acordou de bom humor e não sentiu as dores de cabeça que vinha tendo nos dias anteriores. No entanto, enquanto preparava o almoço, começou a sentir uma transpiração fria. Tinha decidido parar de tomar um medicamento para uma condição cardíaca, pois o seu médico havia dito que estava a melhorar consideravelmente.

Mário continuou a preparar o almoço, que era carne de porco à alentejana. O seu filho Afonso estava na sala. Por volta das 12h50, enquanto segurava um pírex de vidro, ouviu um zumbido forte, não conseguiu segurá-lo e deixou-o cair ao chão. Foi nesse momento que Afonso percebeu que algo estava errado com o seu pai.

Afonso tentou ajudar o seu pai e chamou o 112. O jovem lembra que nesses minutos, cuidou dos detalhes, como colocar os cães na sala para que não fugissem e desligar o fogão. Os bombeiros chegaram rapidamente, já que a ambulância não tinha um médico a bordo. A mãe de Afonso e um dos seus irmãos também chegaram, entretanto.

Mário percebeu que algo estava errado quando o seu braço não se mexia, e ele entendeu que tinha sofrido um acidente vascular cerebral (AVC). Afonso chamou o serviço de emergência e ajudou o seu pai a ficar de joelhos numa cadeira para evitar uma queda. Mário foi transportado de imediato para Coimbra pelo INEM.

Graças à ‘Via Verde’, uma equipa médica estava pronta para tratá-lo, e recebeu uma injeção para desobstruir as artérias. Mário passou nove dias no hospital e enfrentou dificuldades para falar e entender coisas após o AVC. A recuperação de Mário foi possível devido ao apoio de excelentes profissionais de saúde, incluindo um enfermeiro notável que o ajudou no Hospital de Cantanhede. Não tem nada de negativo a dizer sobre eles, bem como sobre a sua família e amigos. Mário também começou a pintar durante a sua recuperação, tornando-se um hobby que agora faz parte do seu quotidiano. Encara a vida com o mesmo entusiasmo de antes, mostrando que há aspectos positivos mesmo em situações difíceis.

De acordo com o INEM, apenas 57% das pessoas com sintomas de AVC ligam para o número de emergência 112 nas primeiras duas horas após o início dos sintomas. O INEM enfatiza a importância das primeiras horas após o início dos sintomas de AVC para garantir tratamentos eficazes. No primeiro trimestre de 2023, apenas 57% dos 3647 pacientes encaminhados para o hospital procuraram ajuda nos primeiros 120 minutos.

O INEM lembra que, em caso de sintomas como fraqueza num braço, desvio da boca e dificuldade em falar, os pacientes devem ligar imediatamente para o 112. O INEM também destaca a importância de fornecer todas as informações solicitadas pelos profissionais do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM após a chamada ser transferida, a fim de realizar uma triagem e encaminhamento adequados para casos suspeitos de AVC.

Segundo o INEM, houve um aumento no número de pacientes encaminhados para hospitais apropriados por meio da Via Verde do AVC, devido à implementação da ITEAMS (INEM Tool for Emergency Alert Medical System). Esta ferramenta permite avaliar rapidamente a gravidade dos casos e otimizar o processo de socorro, emitindo alertas de gravidade de doença e agilizando a comunicação de informações clínicas. A ITEAMS está em operação em todos os meios de emergência médica do INEM e em 115 entidades do Sistema Integrado de Emergência Médica, incluindo bombeiros e a Cruz Vermelha Portuguesa.

No primeiro semestre do ano, o distrito do Porto registou o maior número de casos de AVC, com 725 pacientes encaminhados, seguido por Lisboa, com 683, e Braga, com 261 casos. O Centro Hospitalar e Universitário Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria, em Lisboa, foi o hospital que recebeu o maior número de casos suspeitos de AVC através da Via Verde do AVC, com 281 registos. O Hospital Garcia de Orta, em Almada, recebeu 192 casos, e o Hospital de Braga, 173. Importa também referir que, para marcar o Dia Mundial do AVC, o INEM iniciou hoje uma formação gratuita na plataforma de e-learning, chamada ‘Aprender sobre o AVC’, dirigida à população em geral.

“Estamos todos em risco de ter um AVC” “De uma maneira simples, o AVC é uma doença que acontece de forma súbita a uma artéria do cérebro. Há o AVC isquémico, em que há a oclusão de uma artéria, e o hemorrágico, em que há a rutura do vaso e o sangramento. A nossa campanha mundial passa pela lógica dos três F’s: a pessoa fica com um problema na face – com assimetria na face, a boca ao lado -, sem força no braço e/ou perna do mesmo lado do corpo e sem fala. Do ponto de vista do doente, o AVC é a instalação destes sintomas”, começa por explicar João Sargento Freitas, médico neurologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e membro da direção da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (SPAVC).

“Perante estes sintomas, a pessoa tem de pensar que pode estar a ter um AVC e atuar em conformidade: ligar para o 112. Temos tratamentos muito eficazes, principalmente para o AVC isquémico, mas estão muito dependentes do tempo. Se tentarmos aplicar o tratamento mais tarde, a hipótese de ele ter sucesso vai diminuindo”, observa, indicando que as estatísticas epidemiológicas apontam que até quase 90% dos AVCs são potencialmente preveníveis. “Muitos fatores de risco nem sequer requerem cuidados médicos especiais, mas sim cuidados com a alimentação, exercício físico… Mas há um fator de risco que tem mais peso do que os restantes: a hipertensão. Tem de ser acompanhada, vigiada e tratada”, frisa.

“Todas as doenças são importantes, mas o AVC é a principal causa de morte em Portugal. Quando olhamos para alguém na rua, a causa mais provável de que irá morrer é de AVC. E isso urge-nos a ter muitos cuidados preventivos. Os dados epidemiológicos não indicam uma descida nos óbitos por AVC: temos de informar a população para que se possa atuar precocemente e prevenir esta doença. Não é uma fatalidade como muitas doenças que ainda têm abordagens pouco eficazes”, sublinha. “Estamos todos em risco de ter um AVC. Segundo as estatísticas da Organização Mundial da Saúde, uma em quatro pessoas poderá vir a ter um AVC. Mais uma vez, percebe-se o peso desta doença”.

A SPAVC está a unir-se à campanha internacional da World Stroke Organization (WSO), com o lema “Seja Melhor Que o AVC”, incentivando os profissionais de saúde em Portugal a realizarem ações de consciencialização para aumentar o conhecimento da população sobre os fatores de risco do AVC, especialmente aqueles que podem ser modificados.

O AVC é a principal causa de morte e incapacidade em adultos em Portugal, tornando a educação pública fundamental para ajudar as pessoas a reconhecerem os sinais de AVC e a agirem adequadamente. A data do Dia Mundial do AVC proporciona uma oportunidade para organizações, profissionais de saúde e aliados divulgarem mensagens-chave e aumentarem a consciencialização sobre o AVC.

Neste ano, a campanha da WSO tem como foco aumentar o conhecimento da população sobre os fatores de risco modificáveis para o AVC, incentivando estilos de vida saudáveis que podem reduzir o risco individual. Isso é particularmente relevante para a população portuguesa, pois fatores de risco como hipertensão arterial, tabagismo, dieta não saudável e falta de atividade física são comuns em Portugal.

A SPAVC enfatiza que uma parte significativa da prevenção do AVC está ao alcance de cada indivíduo. Além disso, com o envelhecimento da população, que está associado a um maior risco de AVC, é crucial atuar sobre os fatores de risco que podem ser controlados. A SPAVC está comprometida em sensibilizar a população sobre as consequências do AVC, os principais fatores de risco modificáveis e os sinais de alerta. Eles enfatizam que a única ação correta em caso de AVC é ligar para o número de emergência 112 para acionar a Via Verde do AVC.

A 1 de novembro de 2020, em plena pandemia, Lucie Barreira acordou um pouco “estranha”. “As tarefas que fazia não tinham grande sentido, e eu sentia-me apática. À noite comecei a ter dores de cabeça mais fortes e a vomitar constantemente. Aí tive a mais forte dor de cabeça, mas também a mais rápida da minha vida, parecia um curto circuito. Continuei com os vómitos e estando em época de covid-19 só na manhã seguinte me dirigi a ao hospital”, conta, explicando que, inicialmente, a equipa médica pensou que se tratasse de uma enxaqueca devido à semelhança dos sintomas.

“Mas quando já estava a receber medicação intravenosa é que se deu o episódio, seguido de convulsões. A partir daí fizeram-me todos os exames para realizar o diagnóstico e fui logo internada nos cuidados intensivos. Estive uma semana e pouco internada. Os primeiros dias em cuidados intensivos e depois passei para a neurologia sempre acompanhada pelo mesmo neurologista e diariamente fazia exames, TAC, ressonância magnética e análises e outros exames para a parte cognitiva para ver como tinha ficado ao nível de sequelas (felizmente não as tive)”, diz a jovem hoje com 36 anos, que sofreu uma trombose venosa cerebral severa.

“Na fase seguinte voltei para casa com medicação diária, idas ao neurologista de forma constante e posteriormente realizei vários exames de despiste de epilepsia bem como genética para perceber a causa”, avança. “Nunca imaginei passar por tal pois nunca fumei, treinava, tinha uma alimentação saudável e cuidada. Ou seja, não apresentava fatores de risco”, adianta. “Para mim este é um dia mais do que importante: nunca esperei passar por isto. Eu tinha 33 anos, nunca imaginaria tal mediante a vida que eu levava. Há uma vida antes do AVC e outra depois do AVC”, finaliza.

A importância da intervenção psicológica “Os impactos deste evento traumático, do ponto de vista neuronal, dependem do tipo de lesão e da sua própria extensão/localização. No entanto, esperam-se (com diferentes graus de impacto e gravidade) alterações motoras, de linguaguem, sensoriais, entre outras. No que toca às consequências psicológicas e emocionais, prendem-se geralmente (com base na minha prática clínica) a sentimentos de tristeza, raiva, culpa, desânimo e falta de esperança no futuro, perda de independência/autonomia, bem como, confusão e instabilidade/desintegração do self”, aponta a psicóloga clínica Anabela Liberato. “Este é o tipo de tragédia que envolve uma mudança de vida e, consequentemente, dos hábitos funcionais do dia a dia da pessoa e dos seus próximos. Aqui, encontramos uma dor emocional partilhada da pessoa adoecida com o seu núcleo íntimo de relações que, certamente, deverá ser questão central na intervenção psicológica terapêutica”.

“Nestes e outros casos clínicos é muito importante sublinhar a ação do contexto multidisciplinar na reabilitação. Existem vários tipos de intervenção que podem ajudar a lidar com as sequelas pós-AVC. Apenas como exemplo: as dificuldades no domínio linguístico e/ou alterações sensoriais faciais podem ser alvo da intervenção da Terapia da Fala; as adaptações funcionais diárias podem ser trabalhadas na Terapia Ocupacional; o ganho da força muscular ou melhorias do movimento motor podem ser facilitados, através da Fisioterapia. No que toca à Psicologia, esta poderá ter foco nos processos cognitivos, assumindo uma posição da neuropsicologia e reabilitando funções como a atenção, a velocidade do processamento de informação, a memória, entre outras. Em termos psicológicos e emocionais a Psicologia servirá acima de tudo para apoiar no processo da dor, luta e da ressignificação da vida da pessoa e dos seus, prevenindo até possíveis perturbações psicológicas associadas”, explicita a profissional de saúde, frisando, à semelhança de João Sargento Freitas, que “o AVC continua a ser uma das principais causas de morte ou de incapacidade em Portugal e na Europa”.

“As previsões apontam para o sucesso da intervenção multidisciplinar nestes casos e, ao contrário, o desinvestimento nestas disciplinas provoca maior peso da situação AVC. No que toca à minha experiência e prática clínica vivida, existem bastantes benefícios da Psicologia aos sobreviventes de AVC e aos seus cuidadores ou familiares, tendo o profissional psicológico o papel ativo nos desafios que enfrentam a viver esta ‘nova vida’”, diz. “Creio que cada vez mais a sociedade atual tem olhar crítico em relação à Psicologia e à importância da mesma. Felizmente há cada vez mais procura de apoio psicológico seja nestas condições ou no desenvolvimento de perturbações psicológicas. No entanto, parece que a procura acontece mais nos sistemas privados, talvez pelo carecimento do sistema público destes e/ou outros pedidos”, afirma. “Parece-me, também, importante referenciar que não só os doentes pós-AVC merecem atenção clínica. Cuidar ou lidar com alguém próximo sobrevivente de AVC tem impacto na saúde psicológica e na qualidade de vida, podendo acarretar custos substanciais para a saúde”, declara a mestre em Psicologia do Comportamento Desviante e da Justiça com a dissertação ‘qEEG na prática clínica: um contributo para a construção de um modelo de fenótipos eletrofisiológicos da Perturbação do Controlo dos Impulsos’.

“Outro tópico possível de se discutir é a de que, para além da intervenção ativa no pós-AVC, é importante começarmos a pensar previamente nestas possíveis situações e desenvolvermos preocupação individual nos fatores da nossa vida que possam provocar ou aumentar os riscos de AVC. Assim, num formato de intervenção educativa e preventiva, importa, de forma geral, consciencializar e implementar estratégias de multissetores da saúde, promovendo um estilo de vida saudável e de autocuidado, de modo a diminuir os riscos”, acrescenta, adicionando que a “ressignificação da vida” implica um “contexto altamente personalizado a cada caso clínico”. “Obviamente que podemos generalizar tópicos de intervenção como: o reconhecimento e expressão emocional do paciente e envolvidos, disputa de esquemas (tipo vergonha/defeito, dependência/incompetência, pessimismo) que provocam maior dor, reconhecimento e alteração de mecanismos de coping disfuncionais no lidar (ex: isolamento, consumos,..). No entanto, cada intervenção é ‘olhada’ para a situação interna da pessoa e dos próximos, adequando a intervenção às necessidades emergentes de cada um”.

“O apoio psicológico, bem como outras múltiplas disciplinas, tornam-se numa mais valia no lidar desta mudança de vida. Sem dúvida que as alterações emocionais e psicológicas (do paciente e dos próximos) são difíceis de se gerir, no entanto, o não reconhecimento das emoções envolvidas e das estratégias que utilizam, possuem maior prejuízo no bem-estar dos envolvidos. Por vezes, a tragédia poderá parecer uma questão irreversível, no entanto, o foco da Psicologia ajudará numa visão mais acolhedora da vida”, conclui.

A principal causa de morte “A minha tia Maria teve um AVC hemorrágico em dezembro de 2019 e tinha 70 anos. Não tinha historial de doenças, era uma pessoa saudável e muito ativa. Vivia no Alentejo, mexia-se muito, criava animais… Nada fazia prever uma situação dessas. Vivia sozinha, mas estava com amigos na horta. De Serpa foi encaminhada para Beja e de lá para o S. José. Entretanto voltou para Beja e, depois, ao fim de uns dias fui buscá-la e trouxe-a para cá”, começa por contar Isabel Martins. “Numa clínica privada, o neurologista disse que havia uma janela de seis meses para o AVC repetir-se. Ela poderia ficar acamada ou falecer. A 30 de março de 2020, voltou a ter um AVC, ao pé de um caixote do lixo, hemorrágico também, ficou em coma e morreu no dia seguinte. Tínhamos uma relação muito forte, eu era a filha que ela não tinha. Já não me consegui despedir dela”, recorda com tristeza.

Em 2021, houve uma redução nas mortes por doenças do aparelho circulatório em Portugal, mas estas continuam a ser a principal causa de morte no país, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) que foram revelados em maio passado. Mesmo com uma queda de 6,2% em comparação com o ano anterior, as doenças cardiovasculares resultaram em 32.452 óbitos, representando 25,9% de todas as mortes, uma diminuição de 5,9 pontos percentuais em relação ao ano anterior.

Dentro das doenças cardiovasculares, destacam-se 9.613 mortes por AVC, embora tenha havido uma queda de 16% em comparação com 2020. Também houve menos óbitos por doença isquémica do coração (6.683 óbitos) e enfarte agudo do miocárdio (3.977 óbitos), ambas com uma redução de 2,4% em relação a 2020. Essas doenças representaram menos de metade das mortes no país (46%) em 2021, devido ao aumento do impacto da COVID-19 na mortalidade.

A COVID-19 foi a segunda principal causa de morte em 2021, com 12.986 óbitos, representando 10,4% do total de óbitos. A maioria dessas mortes por COVID-19 (81,3%) ocorreu no primeiro trimestre de 2021. A taxa de mortalidade por COVID-19 foi mais alta em homens (139,8 por 100 mil) do que em mulheres (111,2 por 100 mil), com uma idade média de óbito de 80,5 anos.

Houve um aumento de 1,9% nas mortes por cancro de traqueia, brônquios e pulmão em 2021, enquanto as mortes por cancro de cólon, reto e ânus diminuíram. As doenças do aparelho respiratório (excluindo COVID-19) causaram 10.273 óbitos, uma redução de 8,8% em relação a 2020. Embora tenha havido menos mortes por pneumonia em 2021, isso não resultou numa diminuição no número médio de anos potenciais de vida perdidos devido a doenças do aparelho circulatório, que, na verdade, aumentou em relação ao ano anterior.