O espetáculo de ópera a que assisti recentemente na capital de um dos países do antigo Bloco de Leste foi uma experiência que deixou muito a desejar em quase todos os sentidos, incluindo o olfativo. Teve a vantagem, porém, de me fazer reavaliar de forma positiva a orquestra e o coro do São Carlos, o nosso único teatro lírico. Numa altura em que todos esses países nos ultrapassam nos indicadores económicos, foi um sentimento reconfortante.
Dei-me conta de que se sentara à minha frente um indivíduo cujo traje modesto contrastava acentuadamente com a forma como o espetador médio se aperalta para eventos deste tipo. Um verdadeiro aficionado, pensei eu. Contudo, não tinha ainda terminado o meu julgamento, quando o odor do seu corpo me invadiu as narinas. Como a sala não estava cheia, pude recuar duas filas, mas ainda assim não consegui escapar totalmente às intrusivas moléculas odoríferas. O hábito do banho é uma conquista civilizacional relativamente recente que, infelizmente, ainda não se tornou universal. É das mudanças operadas na sociedade europeia desde a Idade Média até à viragem para o século XX, incluindo as condições e os hábitos de higiene, que nos fala O Processo Civilizacional (1939), uma obra seminal sobre os costumes, da autoria do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990).
Curiosamente, num país como a França, que desde cedo se destacou na alta perfumaria, o ponto crítico da ‘revolução da higiene’ só ocorreu na década de 1950. As condições eram ainda deploráveis nas cidades em finais do século XIX. Vivia-se em apartamentos lotados, abafados e sem água corrente; os quartos de banho, quando existiam, não tinham saída de águas e eram partilhados por várias famílias. Mudava-se de roupa apenas ocasionalmente, os pés raramente eram lavados e uma escova de dentes era algo desconhecido. Já nas primeiras décadas do século XX, a imundice da França rural continuava a ser lendária. Para os camponeses, a sujidade do corpo era uma capa profilática e o forte odor corporal um sinal de boa saúde e virilidade; muitos nunca se lavavam, mesmo depois de um dia de trabalho no Verão – uma boa suadela funcionava como autolimpeza. A Igreja também não incentivava grandes hábitos de higiene, associando-os a luxúria e sensualidade. O corpo era visto como um instrumento de pecado, temendo-se que cuidar demasiado dele levasse a maus pensamentos. Tudo isto nos relata o historiador norte-americano Steven Zdatny num artigo sobre os hábitos de higiene dos gauleses (The Journal of Modern History, 84, 2012, 897-932). É um facto que o século XX trouxe a produção em massa de sabão, sabonetes e champôs, a qual já tinha sido precedida pela introdução de água corrente nas habitações, contudo, como refere o autor, esta decorreu a diferentes velocidades, tendo muitas cidades e regiões francesas recebido redes públicas de água e esgotos somente após a II Guerra Mundial.
Zdatny afirma que os franceses foram mais lentos do que os ingleses ou alemães a atingir padrões modernos de higiene, apesar da intervenção estatal mais acentuada em França. Preocupado com doenças epidémicas, ordem pública e vitalidade demográfica, o Estado francês esforçou-se a partir de meados do século XIX por criar condições físicas que melhorassem a saúde da população, assim como instituir hábitos pessoais de higiene, principalmente através das escolas e do exército. Os efeitos na saúde pública, ainda que lentos, foram inegáveis: a taxa de mortalidade infantil caiu 64% entre 1901 e 1948. Após a guerra, foram vários os fatores que impulsionaram os hábitos de higiene, com destaque para o boom da construção de casas com quarto de banho, as melhores condições económicas e a proliferação de publicidade a produtos de higiene.
Não disponho de dados sobre Portugal, mas as filmagens da noite de 27 de Março de 1958 no Teatro de São Carlos mostram que um público extremamente elegante marcou presença na Traviata da Maria Callas. Quanto às fragâncias de tão seleta audiência, os únicos registos serão os que ainda persistem nas memórias dos afortunados espetadores das duas apresentações lisboetas da diva. No entanto, posso imaginar que ninguém teria arriscado sair de casa sem, no mínimo, uns bons borrifos de perfume francês, o famoso ‘banho à francesa’.