Alterações climáticas. Entre o tempo quente e seco e o ‘dilúvio’

“Vivemos aquele que pode vir a ser classificado como o mês de outubro mais chuvoso dos últimos 90 anos”, explica Alfredo Graça, geógrafo e editor-chefe da Meteored Portugal.

As alterações climáticas têm cada vez mais impacto no quotidiano da humanidade, com uma disparidade de fenómenos extremos, que vão das cheias à seca extrema. Relativamente às primeiras, temos assistido a chuvas mais intensas e frequentes em muitas regiões do globo. De onde resultam cheias mais graves, já que o solo pode não conseguir absorver toda a água suficientemente rápido. O aumento das temperaturas leva ao derretimento dos icebergs e ao aumento do nível do mar. E isso contribui para aumentar o risco de inundações costeiras e fluviais. Com efeito, as alterações climáticas alteram os padrões de precipitação, levando a secas seguidas por chuvas intensas. Daí existirem cheias repentinas e imprevisíveis. Por outro lado, as alterações climáticas podem também causar mudanças nos padrões de chuva que resultam em períodos mais secos e menos chuva em regiões vulneráveis à seca. A seca prolongada pode reduzir a disponibilidade de água doce para uso humano, na agricultura e na indústria, originando escassez de água, entre outros.

“Recentemente, vivemos aquele que pode vir a ser classificado, do ponto de vista climático, como o mês de outubro mais chuvoso dos últimos 90 anos em Portugal continental. Aliás, se analisarmos os primeiros 26 dias de outubro de 2023, este período aparecia no top-5 de outubros mais chuvosos na geografia do Continente, sendo que até ao dia 31 terá provavelmente chovido o suficiente para que possa mesmo tornar-se no mais chuvoso”, começa por dizer Alfredo Graça, geógrafo e editor-chefe da Meteored Portugal (equipa do tempo.pt). “Assim, é bem possível que, desde 1931, início dos registos climático-meteorológicos elaborados de maneira consistente no nosso país, nunca tenha chovido tanto num mês de outubro. Resta esperar pela análise climática a posteriori que será publicada em breve pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA)”.

“Além dos estragos provocados pela passagem de sucessivas depressões atlânticas e suas frentes associadas, o que importa destacar do impressionante registo pluviométrico do passado mês de outubro é que, de um modo geral – ou seja, de norte a sul de Portugal continental –, até ao dia 13 praticamente nenhuma gota de água da chuva precipitou no nosso país. Isto demonstra a enorme variabilidade meteorológico-climática que ocorreu num espaço temporal de somente 31 dias e que pode ser entendido como testemunho da época de alterações climáticas em que estamos inseridos, sobretudo pelo facto de termos passado de um extremo climático a outro num ápice”, explica.

“Do tempo extremamente quente e seco, com dias marcados por temperaturas substancialmente acima da média e sempre soalheiros, passou-se a um regime de ‘comboio’ de tempestades, em que quase todos os dias chovia de uma forma abundante, intensa e persistente. O enorme contraste meteorológico ocorrido entre o período de 1 a 13 de outubro – muito quente e seco – e o período de 13 a 31 de outubro – muito chuvoso e mais fresco – pode ser algo que se tornará mais comum no futuro numa época cada vez mais condicionada pelas alterações climáticas, ou seja, é provável que a frequência e intensidade deste tipo de variações frenéticas nos estados de tempo aumente, seja em períodos de quinzenas ou em períodos mensais, como o de este outubro de 2023”, explicita o mestre em Riscos, Cidades e Ordenamento do Território pela FLUP e mestrando em 

Ensino de Geografia na mesma instituição.

“Outro dado que importa referir é que se verifica uma tendência possivelmente conectada com o fenómeno das alterações climáticas. Dos 20 anos mais chuvosos em Portugal continental desde que há registos, 8 deles ocorreram desde 2000. Isto mostra-nos que num cenário condicionado pelas alterações climáticas, como é o atual, vivemos de extremos climáticos, e disso pode ser um exemplo o mês passado”, adianta.

“Se por um lado é bastante notória uma propensão para secas cada vez mais frequentes e intensas em Portugal continental, sobretudo no Algarve e no Alentejo, mas também no interior Norte e Centro com destaque para o Nordeste Transmontano, todas estas regiões em que a escassez de água é notavelmente visível na paisagem destes territórios (solos gretados, duros e extremamente secos, culturas agrícolas em claro déficit hídrico que se traduzem num possível emurchecimento permanente, rios quase sem caudal ou até mesmo completamente secos), também há que realçar que quando a precipitação surge, surge de uma maneira intensa, abundante e persistente que pode ser simultaneamente benéfica e prejudicial, dependendo das quantidades que acumulam e do tipo de local e solo onde caem”, continua. 

“Em locais onde não costuma chover, demasiada água num curto espaço de tempo pode ser mais prejudicial do que benéfico, pois o solo não tem capacidade de absorção para reter eficazmente a água caída do céu. Quanto às cheias e inundações propriamente ditas, por vezes não é a água da chuva que é excessiva, mas as áreas onde cai é que torna a população vulnerável, pois são feitas construções em locais onde não deveriam ser feitas e que aumentam a probabilidade de inundação. Isto demonstra um certo grau de impreparação na cultura de planeamento e ordenamento do território, sobretudo em locais e regiões onde estes problemas tendem a acontecer recorrentemente”, alerta.

“Outro aspeto que é necessário realçar é que, nalgumas regiões portuguesas, apesar da abundância de água da chuva que fica retida nos solos, a gestão feita sobre estas mesmas regiões demonstra uma enorme falta de cultura territorial e um desconhecimento de como melhor otimizar a (pouca) água que ainda vai ali caindo”, explica.

“Peguemos no caso do Algarve, que é paradigmático: a pouca água que tem é utilizada, ou desperdiçada – dependendo do ponto de vista, de forma abusiva na cultura dos abacates que requerem imensa água para a sua adequada produção e comercialização. Outra questão prende-se com os campos de golfe, excessivamente regados com água que poderia ser utilizada para outros fins. Os dois aspetos mencionados – abacates e campos de golfe – revelam descuido e desleixo na gestão de um recurso tão importante como o hídrico para uma região como a do Algarve que, devido ao seu clima, necessita, acima de todas as outras regiões, de uma gestão ainda mais eficaz e cuidada da pouca água que possui”.

“Uma boa solução parece passar pela central de dessalinização que será construída em Albufeira nos próximos anos.