Quem está em Bikaner, no Rajastão, Índia, e entra na estrada empoeirada onde o trânsito é feito de gente a pé, carros a desfazerem-se, camiões que largam um fumo negro de baquelite, camelos e elefantes e o diabo a quatro na forma de uns macaquinhos irritantes que roubam tudo o que podem, acabará por passar por Uraidamsar e Patana antes de chegar a uma cidadezita pequena que se chama Deshnok. Todos os passantes levam coisas à cabeça, desde galhos secos de espinheiros a caixas de mangas, de nacos de carne escura de borrego e de carneiro a galinhas vivas amarradas com cardaços. Todos os passantes, suponho, levam coisas dentro da cabeça: de onde virá a próxima refeição, como arranjar uma boleia até Jodhpur onde as esmolas são mais abundantes, que fazer para compor a árvore-de-cames da carripana que entretanto se partiu? Enfim. Não sei. Não leio pensamentos por mais que na Índia tudo seja verdade e o seu contrário igualmente. O condutor do carro que nos levou era um mamífero magro de olhos de águia que sabia encontrar cerveja até nos locais onde ela era proibida, ou mais ou menos proibida. Comprámos uma geleira e ele responsabilizava-se por a encher de gelo e de latas de Kingfisher todas as manhãs. Muitos dos tascos de beira de estrada proíbem a venda de álcool mas os donos não se importam que vamos comer o nosso khorma e as nossas lentilhas com naan para as traseiras com a geleira a tiracolo. Depende da quantidade de rupias com que lhes untamos as mãos e, deixem-me que vos diga, a vida pela beira dos caminhos da Índia é barata se acertarem nos condutores convenientes.
Deshnok é um daqueles lugares onde não há nada para fazer. O Rodrigo Lencastre, que estava comigo, aproveitou para ir compor os chanatos que tinham ficado rotos a um sapateiro que podia muito bem ter 175 anos de idade embora eu não lhe desse mais do que 172. Tinha tantas rugas na testa que se o obrigassem a usar chapéu haveria de ter de atarraxá-lo. O Rodrigo não é muito dado a ratos pelo que dispensou, sem sacrifício, uma visita ao templo de Shri Karni Mata, vendo bem o único motivo que me levou a querer ir um dia a Deshnok. Karni Mata foi uma mulher misteriosa e ninguém sabe ao certo quando nasceu embora o meu Lonely Planet garanta que foi no dia 2 de Outubro de 1387 (no calendário hindu a coisa calharia no 7º Asoj Shukla de Vikram Samvat 1444), ou seja, teria, se fosse viva, mais uns bons anos do que o velhote que coseu os chanatos do Rodrigo com laivos de perfeição. Depois de ser transformada numa deusa ganhou vários nomes, algo que na Índia é banal: Bhagwati, Mehaai, Jagdamba e Kiniyani. Atribuíram-lhe o poder da vitória. Foi, pelos vistos, uma guerreira sábia e temida pelos seus inimigos e até os seus seguidores revelam um certo receio porque parece que o seu humor é volátil. Enfim, um toque feminino na personagem que os rajputs (uma longa lista de gente pertencente a diversas castas) e os charans (uma casta que produziu muitos artistas e poetas no Estado do Rajastão e igualmente no do Gujarate) viriam a considerar, com o passar dos séculos, a deusa oficial das famílias reais de Bikaner e Jodhpur. E, conta a História, foi por causa dela que as duas famílias se elevaram à hegemonia do poder numa das regiões mais características da Índia – o Rajastão é, por assim dizer, o Estado onde todo o turista pode encontrar, seja onde for, aquela dúzia ou dúzia e meia de postais que tornaram universal os marajás de turbante, as dançarinas de saris multicoloridos e os elefantes sobre cujos pescoços se sentam com as pernas cruzadas num assomo de dignidade os cornacas vaidosos que os conduzem à custa do movimento do ankus, aquele gancho que é encimado por um bico com o qual se espeta o crânio do proboscídeo e um gancho que serve para puxar as orelhas e o guiar ora para a direita ora para esquerda. Por acaso comprei um de prata lindíssimo a um mahut (os cornacas também se chamam assim) forreta que demorou uma hora a negociar comigo a ferramenta. Talvez tivesse razão. Afinal sempre era o seu volante de elefantes e, só por isso, merece ser regateado até à última.
Por favor não pisem os ratos!
De todos os templos que se ergueram em homenagem a Karni Mata, o de Deshnok é o mais famoso. Não, não esperem ficar abismados, de boca aberta de espanto, como acontece, por exemplo, em Tiruchchirappalli, no Tamil Nadu, onde há templos de todos os tamanhos, formas e cores. O templo de Deshnok é bem modesto até. Mas o seu solo é sagrado para a vida animal e ninguém está autorizado a usar armas no seu perímetro. Se em redor é possível visitar um bosque onde saltitam alegremente os blackbucks, uns pequenos antílopes bastante inquietos que ali vivem a sua vidinha sem que o apetite humano a possa pôr em causa, no seu interior são os ratos que abundam. Mas abundam!
Já lá vou aos ratos, mas não deixo passar em claro alguns pormenores da vida de Karni Mata que me parecem dignos de nota. Por exemplo, descobri recentemente que sendo a sexta filha consecutiva da mesma mãe demorou uma eternidade a vir ao mundo: só viu a luz depois de uma gestação de 21 meses. Imagino que terá sido incomodativo para a parturiente, que se chamava Meha, mas Karni_Mata devia sentir-se a boiar no líquido amniótico como um dos marajás do Rajastão numa piscina de água quente pelo que se foi deixando ficar até a obrigarem a sair. Toda a família se reuniu em redor do ato da expulsão da criança do útero materno na expectativa de ver surgir do interior da mãe o tão esperado rapaz. Debalde. Eis que Karni_Mata estraga a alegria generalizada e uma das irmãs de Meha entra num histerismo revoltado e, ainda mesmo antes de lhe ter sido cortado o cordão umbilical, lança as mãos ao pescoço da recém-nascida para a estrangular logo ali. Perante o espanto geral, as mãos da tia começaram a retorcer-se e os dedos encolheram-se como se tivesse sido atacada por uma artrite galopante. Foi o primeiro milagre de Karni Mata, que haveria de fazer tantos durante a sua estrambótica existência. E, por causa da expressão utilizada pela maléfica tia (que exclamou qualquer coisa como «essa criança pode fazer tudo!»), ganhou o nome de Karni (que pode ser traduzido livremente como trabalho) em vez de Ridhi Kanwar, como lhe estava destinado.
Mais ratos do que homens
Muito bem, falemos então sobre ratos e homens, como diria John Steinbeck, e até pôs essa frase no título de um livro (Of Mice and Men). O templo de Karni Mata tem, para aí, uns 2500 ratos pretos e uns poucos (muitos poucos) de ratos brancos. Quem entra é obrigado a descalçar-se e a passear o mais tranquilamente possível por entre os bichinhos que sorvem litros de leite de enormes pratos que estão espalhados pelo redor. Estes roedores são considerados como reencarnações de charans que tanto assumem a forma de rato como a de homem, embora o façam de uma forma tão discreta que ainda ninguém apanhou um nessa tarefa que deve ser complicada. Confesso que era um daqueles lugares do mundo que ninguém me impediria de visitar, e visitei praticamente todos os que queria. Enquanto caminho por entre centenas e centenas de ratinhos endeusados – há que acrescentar que o rato também é o meio de transporte do deus Ganesh, o da cabeça de elefante – faço por recordar-me da maldição que paira sobre este lugar: quem tiver a má sorte de matar um rato terá de entregar, em troca, um rato em ouro ao templo como castigo. Não encontrei ratos dourados. Ou ninguém mata os bicharocos, e eles andam-nos mais por cima dos pés do que por baixo, ou os que os matam escondem os cadáveres e estão-se nas tintas para as regras da casa. Ah, bom! Quem não se metia numa dessas era o filho da Dona Constança! Eu bem conheço os hindus quando entram nos ciclos das reencarnações e começam a pesquisar no livro das falhas que fomos tendo na vida. Não, não! Não corro riscos. Não tenho medo de ratos, mas lembrei-me do poema do Alexandre O’Neill: «O medo vai ter tudo/quase tudo/e cada um por seu caminho/havemos todos de chegar/quase todos/a ratos/Sim/a ratos». Parece que em Deshnok já todos chegaram a ratos. Quando será a nossa vez? Não deve estar tão longe como isso. Bem mais perto, calculo, do que no meio de uma estrada poeirenta nos confins do Rajastão. Mesmo que haja um condutor esperto capaz de encontrar uma Kingfisher a estalar de geladinha…