Rui Pedro e Maddie são os nomes mais conhecidos dos desaparecidos em Portugal, mas existem dezenas de pessoas cujo paradeiro é desconhecido. Esta realidade é narrada pelos jornalistas Luís Francisco e José Bento Amaro em ‘Sem Rasto’.
R ui Pedro Teixeira Mendonça, um dos casos mais mediáticos, desapareceu a 4 de março de 1998, aos 11 anos, em Lousada, no distrito do Porto. Há quatro anos foi declarada a morte presumida do menino. No entanto, Ricardo Sá Fernandes, advogado dos pais da criança, iniciou um processo contra o Estado português por “falhas gravíssimas” na investigação. A nove dias de completar quatro anos, a 3 de maio de 2007, Madeleine Beth McCann foi vista pela última vez. O seu rasto perdeu-se pelas 22h40, no Ocean Club, na Praia da Luz, em Lagos. O desaparecimento ocorreu quando estava sozinha no apartamento com os irmãos. Cláudia Alexandra Silva e Sousa desapareceu a 13 de maio de 1994 quando ia a caminho da escola no pequeno lugar de Lamela, freguesia de Oleiros (Vila Verde).
Estes são apenas três dos casos mais mediáticos de desaparecimentos verificados em Portugal nas últimas décadas e que os jornalistas Luís Francisco e José Bento Amaro decidiram explorar na sua mais recente obra Sem Rasto, lançada pela Oficina do Livro.
Como é que surgiu a ideia de escreverem ‘Sem Rasto’?
Luís Francisco (LF): A ideia foi-nos vendida pelo Francisco Camacho, pelo nosso editor. Ou seja, não foi nenhum de nós que avançou com ela. Foi ele que nos desafiou para escrever. A mim, ao princípio, e depois desafiei o Zé. A partir do momento em que ele me falou do tema pela primeira vez confesso que as hesitações foram muitas porque isto implicava, de facto, como implicou, mergulhar num mundo muito difícil, doloroso e complicado. Durante muito tempo, mesmo depois de dizer que sim, andei a fazer pesquisa porque a Internet traz-nos muitos artigos, nomes, números… Havia muito por onde investigar. Na verdade, também foi um bocadinho procrastinação porque estava cheio de medo de falar com as pessoas. Mas, depois, quando chegou a altura de o fazer, tivemos de o fazer, e percebemos que as famílias acabam por ter uma enorme capacidade para nos receberem. De certa maneira, até têm alguma necessidade de que tal aconteça. Acabou por ser uma boa surpresa perceber que não estávamos a violentar as famílias ao conversar com elas, mas se calhar até a dar-lhes uma voz. E acho que é isso que fica no livro. Obviamente que, sendo um depósito de casos, no fundo, o que sai daqui é uma homenagem e um respeito enorme pelas pessoas que sofrem isto na pele. Já que não podemos falar com aqueles que desaparecem…
José Bento Amaro (JBA): Eu e o Luís trabalhámos juntos, no Público, creio que durante 22 anos, no Desporto e na Sociedade. Então, ele desafiou-me para escrever este livro. Não é dos temas que me deem mais prazer porque é uma matéria muito dura que causa muito sofrimento a muita gente. Deu imenso trabalho, mas conseguimos fazer algo que é bem decente e serve para recordar um pouco estas pessoas que continuam desaparecidas e, eventualmente, para trazer conforto à família e aos amigos.
No livro explicam exatamente isso, que ficaram surpreendidos com a disponibilidade das famílias, dos amigos e, por outro lado, desiludidos com certas pessoas que deviam ter falado e não o fizeram.
LF: Sim. Nomeadamente, porque nunca tivemos colaboração ativa, por exemplo, da Polícia Judiciária. A Associação das Crianças Desaparecidas nunca arranjou um bocadinho para falar connosco apesar de nunca ter dito que não. Ou seja, dá-me a ideia de que, até por alguma desconfiança, tal tenha acontecido. E entendo! Há muito sensacionalismo à volta deste tema, as pessoas não sabem se vamos tratar o assunto de forma séria ou se somos uns arrivistas que vamos fazer isto apenas para puxar ao sentimento. Percebo que haja dúvidas, mas não nos deram hipótese de as esclarecer.
JBA: As famílias têm uma grande necessidade de continuar a falar destes casos, de obterem uma pista por mais pequena que seja. Parece-me uma atitude normal. Em relação às instituições… Lá terão as suas razões, há que respeitar as decisões. Mas, como autores, nunca quisemos que as pessoas chorassem ou coisa parecida. O livro está escrito de forma muito jornalística. Queremos, apenas, relatar aquilo que se sabe de alguns casos e descobrir outras pontas. Nada de tentar comover seja quem for.
Relativamente aos casos que escolheram, começaram pela página das pessoas desaparecidas da PJ?
LF: Exato. Houve uma quantidade relativamente grande de casos que excluímos, como aqueles de pessoas com senilidade ou que tomavam medicação, porque são casos como os outros, mas que para nós tinham uma explicação plausível. Mesmo esses casos, não aparecerem nunca mais, é uma coisa terrível! Um idoso desorientar-se e desaparecer… Continua a ser um mistério incrível! Nós apenas achámos que havia casos mais ricos com outra dimensão. Quando começámos a pesquisar, entendemos que num artigo x sobre determinada pessoa, surgiam mais três nomes que não apareciam na página da PJ. Porque já foram solucionados ou retirados? E por aí fora. O puzzle foi-se complicando. Faltam peças, outras entram e saem… Não é apenas a PJ que recebe as notificações, são todas as forças de segurança. Se recuássemos da década de 70 para trás, teríamos muitos casos que nem notícia foram. A mediatização destes casos mudou muito nos últimos anos. E mostrou-nos que as primeiras 48 horas são essenciais porque as pistas estão frescas. Se em 100 casos houver um que justifique o esforço das forças de segurança… Já vale a pena! Sei que quem tem de investigar está assoberbado com trabalho, mas, de vez em quando, há casos onde se devia ter feito mais. E, normalmente, esses são aqueles que não têm resposta.
JBA: Sim. É uma página que existe há muitos anos.
De todos estes casos, há algum que o tenha deixado particularmente desconcertado?
LF: Há muitos casos que são impressionantes e alguns têm a ver com a nossa sensibilidade. Por exemplo, o das crianças tocam-nos sempre mais. Não desaparecem porque querem e sabemos que acabam sempre em redes de tráfico humano, de pornografia infantil, etc. Um que me inquieta particularmente é o do miúdo da zona do Porto que, basicamente, estava num parque ao pé de casa e a última coisa que se sabe é que o viram a falar com alguém que estava dentro de um carro. É uma angústia porque é uma coisa que podia acontecer a qualquer um. Mas o caso que me deixa com sentimentos ambivalentes e estranhos é o caso da menina que foi raptada pelo pai: ele tirou-a à mãe, entregou-a a alguém, depois foi apanhado, cumpriu pena e continua sem revelar o destino que lhe deu. E acha que não tem de dar satisfações a ninguém! E isto, em termos de mergulho nos abismos da natureza humana, é, para mim, o que me deixa mais perplexo. Porque, normalmente, alguém sabe o que aconteceu às crianças… Mas, neste caso, é o próprio pai! É como no caso da Valentina, a diferença é que a menina foi morta. Mas nesse há um desfecho, concentrámo-nos naqueles onde não há.
JBA: O caso do Rui Pedro marca-me porque a luta da mãe é incrível. Mas há outros casos que também são igualmente marcantes. Por exemplo, um de que até não falámos porque há uma condenação, o do Rei Ghob. Como é que aqueles pais conseguem viver sem saber o que aconteceu aos filhos? Os jornalistas devem distanciar-se das histórias, mas é extremamente difícil nestes casos.
Como no do Rui Pedro ou o da Maddie.
LF: Isso. A mãe do Rui Pedro foi e é, de facto, uma pessoa de coragem. O caso da Maddie teve um lado mediático completamente fascinante. Há uma história muito inquietante, a da Cláudia, a ‘Carricinha’, impressiona-me imenso porque foi num meio rural. A mãe dela disse-me: ‘Ando completamente perdida, mas tenho um bebé para criar. Ainda tenho um trabalho para fazer’. O desespero deve ser tão grande que a vontade é desaparecer.
JBA: Sim, têm, eventualmente, crimes por detrás. São os mais difíceis. A própria PJ não tem muito interesse em divulgar aquilo que possa saber sobre isso.
Outra temática que abordam, e que é pouco falada, é a dos cadáveres não reclamados.
LF: Aí, falamos de uma pessoa que desapareceu, cujo cadáver existe e ninguém dá nota da sua falta. É outro lado terrível desta coisa toda: há pessoas cuja falta nem sequer é notada. É angustiante. “O que não se encontra é quem os consiga identificar. Dizer ‘Este é o Zé, o João ou a Maria’”, escrevemos. Precisamente porque, na prática, já desapareceram quando eram vivos.
JBA: Essa é outra parte do trabalho. Há muita gente – indigentes, sem-abrigo, pessoas que perderam o contacto total com a família – cujos corpos passam imenso tempo em bermas de estrada, junto às linhas de comboio e noutros sítios e que só são encontrados por pessoas ou forças de segurança por acaso. E ninguém sabe quem são! Pura e simplesmente morreram abandonados. Queremos alertar as pessoas para a necessidade de proteger toda a gente, não só as crianças.
Quanto tempo demoraram a escrever esta obra?
LF: Escrevemos rapidamente. Mas, para trás, está a investigação. No total, demorámos um ano.
JBA: Fomos pegando nas histórias. Não nos dedicámos por inteiro às mesmas porque estamos a trabalhar. Foram meses e, no total, um ano. Para trás está a investigação e, também, a nossa memória. O livro tem um ou dois capítulos de outras coisas que não são histórias de desaparecimentos precisamente para que as pessoas entendam que este não é um desfile de casos tristes.
O que é fundamental retirar deste livro?
LF: Prestar homenagem a quem desapareceu e a quem fica, transmitir informação e fazer com que todos estejamos mais atentos a isto. Não para que nos tornemos demasiado preocupados, mas para sermos mais cautelosos.
JBA: Fazer com que as pessoas percebam que os valores das pessoas estão em primeiro lugar: o respeito, a amizade, a solidariedade. Muitas destas pessoas não mais serão vistas, mas tem de se respeitar a dor daqueles que ainda cá estão! E, claro, quem tem crianças pequenas tem de ter muito cuidado! Existem redes organizadas que se dedicam ao tráfico de crianças para os mais variados fins: órgãos, pedofilia, trabalho infantil… Há todo o tipo de crime e mais algum.