Avenida Almirante Reis. Quando a rua é a única opção

Uns entregaram-se aos vícios. Outros, num ato de rebeldia, saíram de casa precocemente. Há também quem tenha tido tudo e tudo tenha perdido. E ainda quem se sinta abandonado pela sociedade depois de tudo ter feito para viver dignamente. Qualquer que seja o motivo, o destino foi o mesmo: as ruas da Avenida Almirante Reis.

O frio já começou. As luzes de natal da capital já se acenderam. Nas ruas, paira o cheiro a castanhas assadas que parece ditar o princípio da contagem decrescente para mais um Natal. Dentro de algumas casas, já se acendem as lareiras e as mantas já estão fora dos armários. As pessoas estão agasalhadas, por mais que ainda se veja alguns turistas de t-shirt. Estamos no Martim Moniz. São 15 horas e, apesar das baixas temperaturas já se fazerem sentir, a praça está cheia, sobretudo de imigrantes e pessoas em situação de sem-abrigo que aqui queimam o tempo. Esta é a realidade de todos os dias. Há quem, em grupos, ouça música e converse. Outros, sentados nos muros, apenas observam quem passa. Em cada recanto, com caixas a improvisar mesas e pequenos fogões de campismo, homens cozinham pratos tradicionais dos seus países. Por outro lado, protegidas pelas árvores, veem-se tendas de acampamento circundadas por guarda-sóis, sacos de compras, cartões e mochilas. Há também quem aproveite as zonas mais escondidas para consumir. O vício No lado esquerdo da praça, sentado no chão, André Gonçalves, de 39 anos, está abraçado ao seu amigo de quatro patas. O seu olhar não combina com o sorriso que esboça ao perceber que queremos conhecer a sua história. O olhar é meio vazio, só tem três dentes. “Eu vim da Alemanha para trabalhar e o patrão enganou-me! Agora estou na rua, entregue às drogas”, revela ao i com o cachimbo na mão. O jovem é natural da Madeira. Ao chegar a Lisboa, trabalhou durante seis meses para um homem com quem já trabalhava há dois anos e meio. “Trabalhei, mas ele não me pagou! Acabei por ficar sem nada. Seis meses foi o tempo suficiente para destruir a vida”, continua. Há um ano que vive na rua. “Não tenho apoio de ninguém. Ninguém me ajuda. Quando peço ajuda na Santa Casa da Misericórdia, dizem que tenho de regressar para a Madeira, que os meus pais têm de me ajudar. A senhora disse-me na cara que se eu fosse ucraniano, africano, ou seja, refugiado, que me ajudavam. Não ajudam, porque eu sou português! Não se entende!”, exalta André, acrescentando que “é muito complicado sair desta vida depois de entrar”. “Tenho este companheiro, que também foi abandonado. Fazemos companhia um ao outro. Os meus dias são passados a pedir dinheiro. Felizmente as pessoas vão dando umas moedinhas, dá para comer”, conta. Perdido na capital Subimos a avenida, em direção ao Intendente. À porta do Continente, outro jovem pede comida ou moedas com um pequeno copo de cartão. Ao contrário de André, este não tem a cara marcada pelo vício. Os seus grandes olhos castanhos mantêm-se no chão até ser abordado por uma senhora que passa e lhe oferece uma maçã e um sumo. Rodrigo tem apenas 21 anos e vive há três nas ruas da capital. “Estou a dormir na rua há três anos. Tive um mau comportamento com os meus pais durante algum tempo, queria mais liberdade do que aquela que devia e, por isso, vim parar a esta situação”, explica com a voz trémula e tímida. Vivia em Castelo Branco e, aos 18 anos, tomou a decisão de fugir para Lisboa. Mas as coisas não correram como esperava já que durante algum tempo se entregou ao álcool. “É mais difícil arranjar trabalho quando não se tem casa. Na rua eu não tenho sítio para fazer a minha higiene, descansar em condições. Não aguento estar a trabalhar vivendo assim. Já o fiz, mas é extremamente cansativo. Eu chegava ao local onde ia dormir já era de noite e tinha de me levantar de madrugada. Não se descansa na rua. Não se tem condições. As pessoas empregam-me, mas depois surgem as perguntas… Quando eu explico a minha situação, elas não gostam do que ouvem. Dizem que não dá, porque não tenho condições para descansar e depois não trabalho como querem”, revela Rodrigo. O seu dia é passado assim, a pedir dinheiro. “Não quero estar perdido, mas estou. Peço dinheiro e procuro novos lugares para dormir. Nunca durmo no mesmo sítio”, afirma, acrescentando que as carrinhas que lhe entregam comida, quando têm possibilidade de ajudar, dão-lhe agasalhos. “Mas nem sempre é possível. É uma luta”, lamenta. Relativamente às pessoas que por ele passam durante os dias, o jovem garante que ainda existe muito preconceito. “Há muito preconceito, muitas pessoas más. As pessoas veem que eu estou aqui, passam por cima de mim, cospem, pisam-me. Eu só peço que se coloquem no meu lugar. Uma vez, ao falar com uma dessas pessoas, perguntei-lhe o que é que ela faria na minha situação. A pessoa respondeu que se matava, pois não saberia viver assim. Os meus pais já não me aceitam. Não sei como é que vou sair desta situação. Matar-me? Não é isso que quero”, reflete. “Na Santa Casa dizem que não há espaço nos albergues. Mas eu já lá mandei pessoas depois de mim e acabam por ser ajudadas. Não entendo. Sinto-me de parte, à margem. O Estado só ajuda indianos, ciganos… E nós?”, interroga. Anos à espera de teto A Igreja de Nossa Senhora dos Anjos fica mesmo em frente ao refeitório da Santa Casa da Misericórdia. Aqui, tal como no Martim Moniz, muitas pessoas em condição de sem-abrigo passam o tempo. A diferença é que quase todos se encontram com garrafas de cerveja ou vinho na mão. Mário está sentado mesmo na entrada da Igreja. Vai dando goles na garrafa contemplando o movimento da cidade. “Eu estou num albergue, mas considero-me sem-abrigo na mesma! A vida que eu levo é essa!”, revela o homem de 50 anos com uma longa barba negra manchada com alguns brancos. “Eu já estive na rua e a vida que eu levava era uma vida de consumo, metadona, inclusive. Eu consumo esse opioide. Além disso, neste momento, estou alcoólico. Não quero considerar isso, mas o vício chama e é o que sou”, lamenta. Tal como André, Mário é madeirense. Há 19 anos viajou até Lisboa para fazer um tratamento para lutar contra o vício. “Fui para um centro de reabilitação e conheci uma professora de filosofia. Juntei-me com ela, acabámos por ficar juntos e nunca mais saí daqui. Fui e sou animador sociocultural, não é por não ter trabalho que deixo de ser! Vivo com a ajuda da Santa Casa. Como aqui e fico por aqui o dia todo”, acrescenta, dizendo que aqui muita gente sem casa monta as tendas e que, por mais que a Câmara tente reverter isso, estes acabam sempre por voltar. “Já me disseram que querem fechar o albergue onde estou para fazerem um hotel. Não sei… Eles para fecharem aquilo têm de ter outro lugar. Não faz sentido colocar as pessoas todas nas ruas. O centro está excelente. Podemos beber, consumir, fazer o que quisermos”, conta ainda. Para si, é inexplicável quando o Governo diz que não há casas. “Então o que é que é aquilo?”, interroga apontando para um prédio desabitado. “E admiram-se das pessoas encherem este espaço de tendas”, resmunga. “Eu vou ser sincero…. Eu não quero trabalhar, não quero ser escravo de ninguém. Para mim não faz sentido. É tudo escravidão. Não sei como sair deste sítio”, desabafa. De repente, uma senhora interrompe. É Nikita, conhecida como “a rainha dos Anjos”. A falta de dentes destoa da sua idade. Tem 54 anos e demorou 30 para conseguir uma casa para morar. “Tenho um T1 aqui ao lado. Tive dois AVC’s, uma trombose… Foram as drogas que me fizeram vir parar à rua. Fui sem-abrigo durante 30 anos”, detalha com uma cara simpática. “Isso é que leva à rua na maior parte das situações!”, frisa Mário. Nikita esteve internada no Júlio de Matos por conta do álcool. “Já não bebo! Agora fumo um cigarrinho, sim senhora! E de vez enquanto uma passinha de branca, um charrinho. Quem diz a verdade, não merece castigo”, afirma enquanto agarra a bengala que a auxilia a caminhar. “Estou incapacitada e sou seguida por assistentes. Tenho uma reforma pequenina. Pago a minha casinha com a reforma e não sobra nada. Por isso, mais vale passar os dias assim, aqui”, admite. De tudo para nada Quem caminha tanto de um lado como do outro da Avenida é frequentemente surpreendido por acampamentos à porta dos prédios, em frente às lojas. Pedro está deitado com os olhos semicerrados. Vestido de vermelho e com um boné bege, levanta-se assim que é abordado. Tem 56 anos e garante que a única coisa que quer é arranjar um emprego. Há 16 anos, estava a trabalhar nos correios. Foi viver para Santarém. “Comprei um carro a uma pessoa. Entretanto, passado um ano, veio mil euros para pagar de via verde. Pedi 1000 euros ao meu patrão e ele emprestou-me. Mas, passado mais um ano, chegaram mais 1300 euros para pagar. Eu não tive hipótese. Saí dos correios e, como não tinha Fundo de Desemprego, a Santa Casa a determinada altura, conseguiu um quarto para mim. Estava a receber 210 para o quarto e 210 do rendimento mínimo, são 420. Pagava 310 de quarto e ficava com 100 euros. Agora só recebo o rendimento mínimo. Não dá para sobreviver, quanto mais para alugar quartos”, explica. Há quatro meses que está na rua. “Está muito complicado arranjar trabalho. Quero trabalhar para orientar a minha vida. Tenho respondido a montes de coisas, mas está difícil”, garante, assegurando que na rua não se passa fome. “As pessoas são solidárias. O problema é que os próprios sem-abrigo, roubam-se uns aos outros. Eu tinha aqui um saco cheio de comida e levaram-me. Não é normal. O que roubou oxalá que lhe faça falta”, afirma apontando para o local onde estava o saco. Pedro trabalhou a vida toda, tem dois filhos – uma filha com 29 anos e um filho com 18 – e viveu com três mulheres. “Sempre tive uma casa. Sou um gajo porreiro! Mas não vou pedir ajuda aos meus filhos. Sou filho único, os meus pais já morreram”, conta, reforçando que não tem ninguém que lhe dê a mão. Durante algum tempo teve ajuda de um amigo que lhe cobrava apenas 150 euros por um quarto. “Foi uma boa ajuda. Mas essas ajudas são sempre temporárias. As pessoas têm a vida delas”, compreende. O que mais lhe custa é pensar na vida que teve. “Trabalhei em tantos lugares diferentes, fui estafeta, segurança, trabalhei fora, viajei muito… Sempre tive tudo do bom e do melhor… O meu pai tinha dinheiro, era chefe de contabilidade… Não tive juízo. Deu-me 16 mil contos e eu estourei o dinheiro todo. Mas viajei…. Fui duas vezes à Alemanha, três vezes à Bélgica, duas vezes a Amesterdão… Em bom tempo fiz boa vida. A gente não pensa no futuro a longo prazo, pensamos só no amanhã. Esse é um dos problemas. Nunca precisei de nada. Era um menino rico! É triste… Perdi tudo”, afirma com os olhos postos no chão. Interrogado sobre se conhece pessoas que mesmo sendo ajudadas, preferem manter-se na rua, Pedro conta que conhece um rapaz que mora há 10 ou 15 anos nas ruas do Areeiro, ao pé das bombas de gasolina que, quando lhe foi cedida uma casa, não aceitou. “Há quem diga que a vida passou a ser na rua. Não acho isso normal”, defende. Falta de respostas Já caiu a noite. A avenida está mais movimentada do que em qualquer outra altura do dia. Está trânsito e a chuva miudinha incomoda aqueles que andam a pé. Dois amigos juntam-se perto de uma tenda montada em baixo de um dos prédios. Um deles nasceu em Angola, mas diz ter sangue português. Armindo veio parar à rua depois de ter tido vários episódios de psicose e se ter tentado suicidar. “Estava num quarto o ano passado, mas comecei a avariar a minha cabeça. Estava a planear matar-me, abandonei o quarto e vim para a rua, por opção. Estou bastante arrependido. Desde abril que aqui estou. Agora voltei à estaca zero. Como no refeitório da Santa Casa e durmo aqui na rua. Estou em busca de outro quarto. Passo os meus dias a deambular sozinho. Mas às vezes encontramos amigos”, conta abraçando João. “Quando eu estava num quarto, ele estava na rua. Agora ele tem quarto e estou eu na rua!”, brinca. Segundo João, foi o próprio que teve de procurar abrigo. “Na maior parte das vezes são assistentes que arranjam, mas a mim, mandaram-me procurar. Pago 350 euros. Acha normal? Não sobra nada! O nosso país é muito turístico. Eles preferem ter cá essas pessoas do que nos ajudar a nós”, afirma revoltado. Os dois homens, que estarão na casa dos 40 anos, falam com uma rapariga que timidamente coloca a cabeça de fora da tenda. Loira, com o coque perfeito, lábios vermelhos, eyeliner que marca os grandes olhos castanhos esverdeados e duas argolas douradas, Maria, de 43 anos, junta-se ao grupo. Mora em Portugal há 18 anos. “Sou brasileira, mas tenho documentação portuguesa. Vim para melhorar a minha vida, mas a verdade é que a perdi. Fiquei a depender da Santa Casa, mas não sei até que ponto eles ajudam ou empatam a vida das pessoas”, desabafa com os braços cruzados que fecham o casaco de lã castanho. “Comprei uma tenda, porque estava a dormir na porta da igreja há algum tempo. Ganhei um saco cama… Antes disso, dormi em quartos e salas de pessoas que me foram ajudando. Mas a ajuda acaba, como é normal. As pessoas têm a sua vida”, continua. Há dois anos que não tem um teto. “A Santa Casa arranjou-me um quarto, mas eu estava em perigo. Era uma casa onde não parava de entrar gente. Morava lá um rapaz com um cão muito mau. Fui mordida, levei uma facada no peito. Era uma grande confusão. Eu não podia sair do quarto nem para ir à casa de banho. Era um terror completo”, revela. Maria garante que sempre trabalhou e pagou as suas despesas. “Mais vale eu estar no meu cantinho, mesmo que na rua, do que morar numa casa onde não estou em segurança! O senhorio mudou a fechadura sem o meu consentimento. Eu não tive nenhuma chatice com ele… Foi tudo muito estranho”, alega. Quando a mandaram embora, chegou a chamar a polícia que lhe disse que não podia fazer nada. Antes disso trabalhou num hostel na Parede e trocava trabalho por abrigo. “Foram seis meses. Foi uma ajuda. Fiz um dinheiro, fui procurar um quarto. Voltei para Lisboa. Nessa altura, eu estava à espera da minha assistente social. Ela deu-me duas opções, ou procurar um quarto ou voltar para o Brasil. Mas sempre que nos íamos encontrar, ela não aparecia. Eu tinha as minhas malas feitas. Trocaram-me a assistente social e veio um senhor que não conhecia nada do meu processo. Várias vezes ele marcou comigo, mas também nunca tinha resposta”, lamenta. “Eu já não estou aqui a fazer nada! Ninguém me ajuda, eu não compreendo a falta de respostas. Não sei tratar das burocracias. Quando eu cheguei a Portugal, ganhava 1000 e tal euros. O salário era bom. Trabalhava bastantes horas. Dividia uma casa com uma amiga, a casa era barata. Morei em muitas casas e nunca paguei os valores que pedem hoje”, afirma triste. “Os prédios estão aqui, abandonados, ocupados pelas ratazanas. Preferem deixar as casas para as ratazanas, ao invés de abrigarem as pessoas”, remata.