“Levante-se Raposo! estamos à vista da Palestina!”

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A 23 de Outubro de 1869, com 23 anos, Eça de Queiroz partiu com o seu futuro cunhado, Luís de Castro, para o Egipto onde assistiu à inauguração do Canal do Suez. Pelo caminho escreveu, tanto em jornais, como em A Relíquia ou em O Egipto, Notas de Viagem, várias páginas sobre a Palestina, um lugar que o fascinou.

Era um jovem Eça. Que jovem era! 23 anos apenas. No dia 23 de Outubro de 1869, juntamente com Luís de Castro Pamplona, Conde de Resende (que viria a ser seu cunhado), parte de Lisboa rumo a Cádiz. Aí embarcou para Alexandria, onde aportou a 5 de Novembro, após paragem em Gibraltar e Malta. A 7 de Novembro chegaria ao Cairo. Descreva-se a situação privilegiada de José Maria Eça de Queiroz: um dos cerca de mil europeus e não europeus que o Khediva Ismail havia convidado para as festividades do século – a abertura do Canal do Suez. Os franceses constituíam o maior grupo sendo em número de 300. Normal: afinal foram os responsáveis pela grande aventura de ligar a Europa à Ásia pelo caminho mais curto do Egipto. Vasco da Gama perdia-se nas brumas da memória. Impante, a Imperatriz Eugénia estava lá. Despeitados, os ingleses não enviaram qualquer membro da realeza: limitaram-se à presença do Embaixador inglês em Constantinopla, Sir Henry Elliot.

A Palestina está nas páginas dos jornais. Alguma vez não esteve? Desde os primórdios da fuga dos judeus do Egipto. Desde que as potências internacionais impuseram a realidade de um Estado Judeu naquela estreita faixa de terra que se chama Palestina. Desde que os árabes também foram, por sua vez, espalhando-se por uma região marcada a sangue.

«Topsius gritava, à porta do beliche, alegremente:

– Levante-se, Raposo! Estamos à vista da Palestina!

O_«Caimão»_parara; e, no silêncio, eu sentia a água roçando-lhe o costado, de leve, num murmúrio de mansa carícia. Por que sonhara eu assim, ao avizinhar-me de Jerusalém, com os deuses falsos, Jesus seu vencedor, e o Demónio a todos rebelde? Que suprema revelação me preparava o Senhor?…».

Raposo, o Raposão d’A Relíquia, partiu para a Terra Santa com uma tarefa muito mais séria do que o Eça para ver a abertura do canal: levava consigo a responsabilidade de descobrir uma relíquia que tivesse pertencido a Cristo para encher a alma da sua tão rica como hedionda Titi com cuja herança sonhava desde sempre. Chegava abatido à Palestina, na companhia de um mamífero abrutalhado, o dr. Topsius, da Imperial Alemanha, porque se perdera de amores pecaminosos por Mary, a sua Maricoquinhas, uma prostituta elegante, aquando do tempo que passara no Cairo. Precisava de uma alma nova. E de uma relíquia das autênticas, coisa de estadão, para carregar para Lisboa e passar a ter direito ao dinheiro do estupor da velha, uma beata dos sete costados que tinha tomado as rédeas da sua educação. Ah! A Palestina. E é assim que Teodorico Raposo olha pela primeira vez para aquele lugar único no mundo: «Um ar fino e forte banhou-me deliciosamente, trazendo um aroma de serra e de flor de laranjeira. O mar emudecera, todo azul, na frescura da manhã. E ante os meus olhos pecadores estendia-se a terra da Palestina, arenosa e baixa – com uma cidade escura, rodeada de pomares, toucada no alto de flechas de sol irradiando como os raios de um resplendor de santo.

«- Jafa! – gritou-me Topsius, sacudindo o seu cachimbo de louça. – Aí tem o D. Raposo a mais antiga cidade da Ásia, a velhíssima Jeppo, anterior ao Dilúvio!_Tire o barrete, saúde essa anciã dos tempos, cheia de lenda e de história… Foi aqui que o borrachíssimo Noé construiu a sua arca.

Cortejei, assombrado.

– Caramba! Ainda agora a gente chega, já lhe começam a aparecer coisas da religião!»

A jornada infinita!

Em Setembro de 2000 eu estava na Faixa de Gaza. A_Palestina parecia estar prestes a comemorar, finalmente, a sua assunção a Estado de Direito baseada na posição do Primeiro-ministro israelita Ehud Barak, eleito no ano anterior, de retirar as forças militares do sul do Líbano e participando nas negociações com a Autoridade Palestina de Yasser Arafat e com o Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, durante a Cimeira de Camp David de 2000. Durante esta cimeira, Ehud Barak ofereceu um plano para o estabelecimento de um Estado palestino na Faixa de Gaza e 91% da Cisjordânia. Quando passei pelo primeiro «check point» vi a bandeira branca, verde, vermelha e negra da Palestina hasteada, tremulando orgulhosa ao vento. As fardas cor-de-azeitona dos soldados de Israel misturavam-se com as azuis claras dos seus inimigos. Na altura, pensei que estava a assistir ao desenrolar da História. Mas a História é, como os caminhos do Senhor, insondável. Os israelitas apresentaram novas exigências: controlo sobre todas as fronteiras e principais cursos de água, anexação definitiva de 12% do Vale do Jordão, a região mais fértil da Cisjordânia, reservando-se ainda o direito de permanecer entre 12 a 30 anos em outros 10% dessa região. Yasser Arafat rejeitou o acordo, exigindo, como pré-condição para as negociações, a retirada de Israel para as fronteiras de Junho de 1967. Após o colapso das negociações, começou a Segunda Intifada.

Não, não consigo dizer como o Raposão da Titi: «Esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira!». Mas a jornada de Teodorico Raposo terminou de forma desastrosa quando, ao regressar a Lisboa, trocou os embrulhos de papel pardo, e em vez de entregar à horrorosa Titi aquele que trazia a verdadeira coroa de espinhos do_Cristo, relíquia das relíquias, lhe pôs nas mãos outro que se desfez e deixou tombar no chão a camisa da prostituta Mary com um bilhetinho inequívoco: «Ao meu portuguesinho valente!». Eça, o autêntico, esse sim divino, publicou no Diário de Notícias várias reportagens sobre a viagem intituladas «De Port-Saïd ao_Suez», quatro artigos datados de 17, 18, 19 e 20 de Janeiro de 1870, ou seja, pouco depois do regresso a Lisboa, que teve lugar em 3 de Janeiro. E foi tirando notas e mais notas para escritos posteriores o mais brilhante dos quais será, muito provavelmente, A Relíquia.

Os aparelhos de televisão fazem-nos entrar pela casa dentro imagens abastardadas de explosões e sangue e mortos. É a Palestina de hoje. Tão distante daquela que Eça de Queiroz descrevia assim: «Na luminosa meiguice da tarde, a estrada alongava-se através de jardins, hortas, pomares, laranjais, palmeiras, terra de promissão, resplandecente e amável. Por entre as sebes de mirtos perdia-se o fugidio cantar das águas. O ar todo, de uma doçura inefável, como para nele respirar melhor o povo eleito de Deus, era um derramado perfume de jasmins e limoeiros. O grave e pacífico chiar das noras ia adormecendo, ao fim do dia de rega, entre as romãzeiras em flor. Alta e serena no azul, voava uma grande águia».

Malhas que o ódio e a pólvora desfez. E continua a desfazer…