Retratos contados

por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

Depois de celebrar mais um aniversário, está na hora de apanhar o avião e voltar para Portugal. Antes de retomar a leitura do livro Misericórdia, de Lídia Jorge, que me tem feito companhia nesta viagem, aproveito para observar o que me rodeia. Centenas de pessoas no aeroporto. Conto menos do que uma dezena as que têm um livro na mão.

Durante a minha infância, eram poucas as pessoas que tinham um telefone fixo em casa. Hoje, os telemóveis dão para tudo, até para fazer chamadas. O telefone fixo só serve para ligarmos para o nosso telemóvel, quando não o encontramos.

Antes de entrar no avião, oiço mães a chamar pelos filhos: “Francisco; Afonso; Alice e Matilde”. São os nomes que mais oiço.
Onde estão os “Paulos; Carlos e Luíses?” e as “Susanas, Sandras e Cristinas” tão na moda na década de 1970? Provavelmente são os pais destas crianças, ou quiçá os avós.

Entro no avião e todo o pessoal de bordo é mais novo do que eu. Vejo passar os autocarros e muitos dos motoristas são mais novos do que eu.
Durante grande parte da minha vida todos os políticos, sem exceção, eram muito mais velhos do que eu. Agora, desde que o Jerónimo de Sousa deixou de ser secretário-geral do PCP, fico com a ideia que todos os políticos são mais novos do que eu.

Bom, é verdade que sou mais novo do que o Presidente da República e do que o António Costa. Ainda assim, esta máquina do tempo está numa velocidade cruzeiro.
Recordo-me ainda de ver os polícias sinaleiros. Hoje, poucos os recordam e todos os polícias… são mais novos do que eu.
Continuo a detestar cebola e nabos. Mas passei a gostar de pimentos na salada e de favas, imagina.

Ainda ontem brincava com berlindes no recreio da escola e passava as férias de verão a ver os “Jogos sem Fronteira”. Hoje, dou comigo a estudar PPR.
Não sei se é uma crise de meia-idade. Não sei se o melhor de mim está para chegar ou já chegou.

Bjs

Querido neto,

Nem me fales e idade! Que direi eu a passos largos dos 81? Bela escolha a do livro Misericórdia da minha grande amiga Lídia Jorge. Sabes que esse livro foi um pedido que a mãe da autora, uma nonagenária internada num lar de idosos, lhe fez para sensibilizar o mundo para a necessidade de mais compaixão para com os velhos. Um tema que trabalhas tão bem, e que abordamos nas nossas conversas com muita frequência.

Percebo o que sentes! Mas com a idade aprendemos a valorizar o tempo e a desvalorizar o que não tem importância.
Ser velho é ter o privilégio de viver uma longa vida. O contrário de ser velho é morrer novo e isso ninguém quer! Perdemos a jovialidade mas mantemos alguns sonhos. Apesar da idade, ainda tenho força e vontade de aprender coisas novas. Sou do tempo dos faxes e telegramas. Hoje, graças ao que me ensinas, faço videochamadas para todo o mundo. Continuo a fazer planos. Todos os dias, na esplanada junto ao mar, recordo, com saudades, o que já vivi, e penso, com esperança, naquilo que tenho ainda para viver.
Há uns anos estava com os meus netos e um deles pergunta: “Avó, o que é a eternidade?”.

Fiquei meio atordoada com a sensação de finitude/ eternidade e respondi:
“Quando os teus pais te disserem a ti, e aos teus irmãos, o quanto eu vos amava, e quando vocês, meus queridos netos, disserem aos vossos pais, que guardam lembranças minhas, desta avó que tanto vos ama, e que sentem saudades minhas, é sinal que não terei morrido nunca. Que serei eterna nos vossos corações. É isso que é a eternidade!”.

Tenho saudades de algumas coisas do passado. Mas tenho confiança nos momentos de felicidade que ainda irei viver.
Tenho saudades dos tempos em que me perdia em sonhos, mas ainda hoje continuo a sonhar.
A mulher que sou hoje é a soma de muitas felicidades.
A vida renova-se a cada nascer do dia.
Bjs