Pedro Sánchez entrou pelas traseiras num Congresso rodeado por manifestantes para o que seria um dos debates de investidura mais tensos na história da democracia espanhola. No seu discurso, apresentou a amnistia como um «muro de democracia» contra «o ódio do PP e do VOX» e deixou promessas de pleno emprego e transportes gratuitos para jovens e desempregados. Alberto Núñez Feijóo acusou o líder do PSOE de «comprar o poder» e vaticinou: «A si, a história não o amnistiará». Santiago Abascal falou num «golpe de Estado», acusando Sánchez de tentar chegar ao poder com uma «aparência de legalidade», como fizeram «Hugo Chávez, Maduro ou Hitler».
Investido no Congresso e antecipando-se uma maioria favorável no Tribunal Constitucional, Pedro Sánchez deverá conseguir manter-se no poder. Mas a instabilidade e o desgaste político condenam o novo Governo.
‘Espanha não se rende’
A grande clivagem da política espanhola, nestes dias, continua a ser a lei da amnistia. No passado domingo, centenas de milhares de espanhóis saíram às ruas por todo o país. ‘Vergüenza’ é uma palavra que se tem ouvido muito por estes dias.
PP e VOX uniram-se no apelo à mobilização. Numas Portas do Sol a rebentar pelas costuras, o líder dos populares, acompanhado por Isabel Dias Ayuso, afirmou: «Não foram as urnas, foi a ganância de uma pessoa que nos trouxe até aqui». Unida na manifestação e na rejeição da amnistia, a direita dividiu-se à tarde, quando o VOX apelou a concentrações junto das sedes do PSOE por todo o país. E, ao 11.º dia de protestos, Tucker Carlson juntou-se a Abascal na calle Ferraz. O Solidaridad, sindicato ligado ao partido de Abascal, convocou uma greve geral para o próximo dia 29 de novembro. Nas ruas, onde também se joga o futuro de Espanha, o VOX tem assumido a liderança, sobretudo mediante a mobilização entre jovens.
Resistência internacional
Depois das preocupações manifestadas pelo comissário europeu para a Justiça, o PSOE enviou, na terça-feira, a proposta de lei para Bruxelas. Também o socialista Josep Borrell, Representante da UE para a Política Externa, afirmou que o acordo lhe suscitava «bastantes preocupações». O ponto que mais dificuldades causa, e que pode por Sánchez em rota de colisão com a UE, é a referência, explícita no acordo e implícita na lei, ao lawfare. Admitindo a possibilidade de a justiça ter sido politizada no Procès, a referência pode constituir uma interferência no poder judicial.
O PP tem apostado na ‘internacionalização’ da contestação. Alberto Núñez Feijóo convocou os correspondentes de meios de comunicação estrangeiros em Madrid, sob o mote #HelpSpain, para dar a conhecer a situação e deixar um aviso: «A deterioração do Estado de direito e da democracia espanhola implica também a deterioração da democracia europeia.» O grupo do EPP pediu um debate sobre a lei da amnistia no Parlamento Europeu, alertando para o «risco de violação da separação de poderes e para a independência judicial».
Último recurso
Na frente jurídica e constitucional, o caminho pode ser longo. O Supremo Tribunal emitiu um pronunciamento, aprovado por unanimidade, referindo do que «o exercício da função jurisdicional se ajusta sempre à legalidade, à defesa da Constituição e à salvaguarda dos direitos e liberdades de todos os cidadãos, em particular o da igualdade na aplicação da lei» e estabelecendo, no que parece ser uma alusão à ideia de lawfare, que «a necessidade de preservar e garantir a independência judicial de todas as instituições» é «incompatível com a fiscalização ou supervisão do trabalho do judicial por outros poderes do Estado». Mas se a lei da amnistia chegar ao Tribunal Constitucional, é pouco provável que seja travada, uma vez que existe uma maioria de juízes progressistas e próximos do PSOE, incluindo o juiz Juan Carlos Campo, que era ministro da Justiça no Governo de Sánchez e foi responsável pela fundamentação dos indultos, ou Laura Díez, que ocupou funções no Ministério da Presidência até ao ano passado.
Neste contexto, o último recurso para os oponentes poderá ser o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Ao Nascer do SOL, Jorge Buxadé, deputado europeu do ECR, referiu que o TJUE tem «motivos mais que suficientes», no artigo 2 do Tratado da União, para se opor à lei.
Um governo desgastado pelo ‘xarope democrático’
O que a ação e reação nas ruas, nos Tribunais e na sociedade civil espanhola sugerem é que este Governo estará, desde o primeiro dia, ameaçado não apenas instabilidade, mas também pelo desgaste. Milhares de espanhóis saíram às ruas nos últimos dias com palavras de ordem como «Si tienes cojones, convoca elecciones» e Pedro Sánchez, em público, tem sido alvo de insultos ou do que (ironicamente, em retrospetiva) Pablo Iglesias uma vez definiu como «xarope democrático» permitindo aos «de baixo» «interpelar as elites diretamente».
A aposta do PSOE, como a de todos os que veem o seu poder tremer nas ruas, é a de que os espanhóis se deixem desmobilizar pelo cansaço. «Numa semana, esta inflamação terá passado. Toda esta operação de assédio da direita resulta de gente que continua a acreditar que há hipótese de dinamitar a investidura. Até que se produza [a investidura] não vão parar, mas quando Pedro for eleito presidente não terão outro remédio senão assumir a crua realidade», declararam dirigentes do PSOE ao El Mundo. Segundo Jorge Buxadé, o Governo tem apostado na desmobilização das manifestações «maciças e pacíficas» através do medo, mediante uma «agressiva ação policial».
País refém de Sánchez, Sánchez refém dos independentistas
Mas é possível que destes dias de revolta saiam consequências políticas. Para Feijóo, um político institucional e pouco carismático, a rua – atual epicentro da oposição a Sánchez – é um lugar estranho. E Abascal ameaçou romper as alianças regionais com o PP caso os populares não travem a tramitação da lei da amnistia no Senado, onde têm maioria. Segundo Jorge Buxadé, «seria o que o VOX faria se tivesse maioria no Senado», sublinhando a «legitimidade democrática» deste órgão eleito para vetar a lei, devolvendo-a ao congresso.
Mas se uma Espanha em suspenso ficou refém deste processo, Sánchez estará, enquanto durar o seu Governo, refém dos independentistas. No debate de investidura, o porta-voz da Esquerda Republicana da Catalunha, Gabriel Rufián, referiu o referendo e lembrou Sánchez que não tinha alternativa (ao apoio dos deputados da ERC), concluindo em tom de ameaça: «Não brinque…». Miriam Nogueras, porta-voz do Junts, também deixou um aviso: «Para nós, o compromisso com a independência é irrenunciável (…) connosco não tente a sorte».
Resta saber quanto tempo mais a sorte protegerá a audácia de Pedro Sánchez.