Santa Bárbara e o dragão

O dragão de Braga não faz mais do que afrontar a paisagem e a identidade cultural local.

Conquanto na tradição cristã o dragão surja associado a Santa Margarida e a São Jorge, simbolizando a luta contra o mal, gostaria de mencionar aqui outro dragão, com uma ligação mais direta a Santa Bárbara. Sob a forma de escultura metálica, encontra-se em Braga nas imediações do jardim conhecido pelo nome da protetora contra raios e trovões.

Para os europeus, o dragão começou por ser uma serpente (draco para os romanos; drakon para os gregos). Segundos alguns historiadores, na origem da sua transformação na imagem alada que conhecemos estiveram más traduções, exageros, relatos míticos e folclóricos tidos como verdadeiros – algumas mitologias incluíam serpentes voadoras -, assim como confusões entre animais diferentes. Na sua Historia Animalium (1551-1558), que marcou a transição da zoologia antiga e medieval para a moderna, o suíço Conrad Gessner tentou abranger todos os animais conhecidos, incluindo os dragões. A Ilíada (circa séc. VIII a.C.) de Homero, a História dos Animais (séc. IV a.C.) de Aristóteles, a História Natural (séc. I) de Plínio, o Antigo Testamento, bem como a tradição folclórica e os bestiários medievais, foram algumas das fontes de Gessner, às quais acrescentou as suas próprias observações. Enquanto para os autores clássicos o drakon era uma serpente, para Santo Agostinho (354-430 d.C.) tratava-se de um animal alado que, apesar das dimensões enormes, podia voar. Os dragões representados nos bestiários são, com efeito, frequentemente alados e, por vezes, com pernas. A taxidermia pária (criação de seres irreais embalsamados utilizando partes de animais diferentes), comum no século XVI, resultou em dragões bípedes e alados, entre outras monstruosidades. Gessner foi vítima de tais truques, e a crença persistiu até ao século XVIII. Ao contrário do dragão ocidental, o congénere chinês nunca adquiriu asas. Além disso, é benevolente e simpático, simbolizando poder e boa sorte, razão pela qual marca presença em eventos festivos.

Suportado por uma peanha colocada num chafariz, o dragão de Braga resultou de um projeto de street art promovido pela cidade em 2013. Embora esteja patente no espaço público desde então, o site da Câmara informa que é a título precário. Não é comum, na verdade, encontrar estas figuras imaginárias representadas nas cidades dos países ocidentais, especialmente nos centros históricos. E não será de estranhar, pois estatuária urbana refere-se ao conjunto de esculturas figurativas com relevância antropológica, estética e histórica, resultantes de uma atitude celebrativa em relação a personalidades, eventos históricos ou valores universais (veja-se Estatuária Urbana Conimbricense (2001) de Victor Correia).

Poder-se-á argumentar que em Basileia, onde Gessner estudou medicina, são comuns nas ruas as representações de basiliscos. De facto, nesta cidade suíça existem 28 bebedouros públicos com a figura do mítico ser, meio galo e meio réptil, cujo bico jorra água desde 1884 (foto). Contudo, dá-se o caso de o nome da urbe se relacionar por homonímia com o da bizarra criatura, que, de resto, é um elemento da heráldica local. A tudo isto acrescem as lendas locais relacionadas com o basilisco. Já em Braga, a situação é totalmente distinta: se, por um lado, a cidade não possui nenhuma relação particular com dragões, por outro, o nível artístico da obra não é compatível com o local onde se encontra. Trata-se de um conjunto tosco (a começar pela indescritível peanha) que celebra, no máximo, a incultura, o kitsch e o improviso. Ao contrário dos basiliscos de Basileia, que oferecem água fresca ao transeunte, o dragão da cidade dos arcebispos não faz mais do que afrontar a paisagem e a identidade cultural local, além de bloquear os repuxos do chafariz. Em vez de sair em jato, a água bate na medonha peanha e esguicha para os lados.

Séries como A Guerra dos Tronos alimentam o imaginário medieval-fantástico associado aos dragões, cujo apelo infantojuvenil é garantido. Diz-se que uma das razões para a béstia de Braga permanecer no local é as crianças acharem-lhe graça. Pois bem, poderá ser, mas convém ter presente que se apenas fosse proporcionado aos pequenos aquilo de que gostam, nunca tomariam banho, iriam à escola ou comeriam brócolos.

Por tudo isto, urge mudar o bicho de lugar, para que o provisório não passe a definitivo e nivelar por baixo não se torne regra. É uma pena já não existir a Bracalândia.