Muitas vezes gostamos de artistas como se fossem da nossa casa, como se com eles tivéssemos crescido e vivido. Há músicas que nos limpam a alma, outras que nos curam as feridas. É difícil explicá-lo, mas é fácil senti-lo. Falava sempre devagar, como quem não tem pressa de viver. “Nós somos aquilo que somos mesmo que não consigamos explicar”, dizia. “Deixa-me ser, só ser”, repetia. Apesar de mundialmente conhecida, sempre foi tímida e nunca teve vergonha de admiti-lo. Gostava de passar despercebida, mas era difícil não reparar nos seus grandes olhos castanhos que viviam na dicotomia de duas culturas (a portuguesa e a cabo-verdiana), das quais tinha muito orgulho. As músicas que escreveu servem de combustível para muitos que, ao ouvi-la, se apaixonam ainda mais pela vida. Tinha esse poder: trazer leveza com a voz e calma com o sorriso. Cantou o Ponto de Luz durante muito tempo, agora, ao olhar para o céu, tornou-se ela própria esse ponto, eternizado em todas as composições que fez nascer. Sara Tavares morreu no domingo, no Hospital da Luz, em Lisboa, aos 45 anos. Há mais de uma década que tinha sido diagnosticada com um tumor no cérebro.
Porque não a mim? Em 2012, no programa da SIC, Alta Definição, a artista contou, pela primeira vez, como lidou com o diagnóstico de tumor. “Vivo em favor de Deus e tento estar ao seu serviço em cada passo”, citou-a Daniel de Oliveira, interrogando-a depois se esta falou com ele no dia da sua operação. “Sim”, respondeu Sara Tavares. “Há mais uma conversa, um tentar estar numa consciência constante perto da vibração positiva. Naquele dia fui anestesiada, mas não tive uma anestesia geral, portanto, eu não fui dormir para a operação. Foi uma operação feita consciente. As operações ao cérebro, às vezes, são feitas com as pessoas acordadas para se poder ver o que é que está a afetar o centro de comandos”, explicou, acrescentando que “quando as pessoas são operadas inconscientes podem depois acordar e serem afetadas funções que podem faltar”. “Eu estava completamente consciente. Ouvia, falava e até cantei. O meu tumor estava localizado em cima da função da fala, então, quando se tocava lá atrapalhava a minha fala, a construção das sílabas. Aparentemente o falar ativa uma zona do cérebro, mas o cantar, ativa outra”, contou, lembrando que lhe pediram para cantar o Chamar a Música, mas que esta recusou por estar “desatualizado”. “Acho que cantei outra coisa qualquer e ainda estive a improvisar”, brincou.
Quando lhe deram a notícia, não teve consciência do problema. Até porque o diagnóstico só foi possível depois de ter tido uma crise e ter desmaiado. “Tive de fazer um exame e os responsáveis disseram-me logo que devia contactar o meu médico o mais rapidamente possível”, revelou. Percebeu que devia passar-se alguma coisa. Apesar da hipótese de ter um tumor lhe ter surgido, tentou relativizar, não sofrer antecipadamente. “Mas fui inteirando a ideia e depois, quando me disseram que sim e me explicaram quais eram as dimensões, percebi que tinha sido detetado a tempo”, continuou.
“Eles achavam que era benigno, mas tinham de analisar”. A artista fez alguns telefonemas para algumas pessoas que queria que soubessem, mas também não quis as alarmar, já que os médicos a tranquilizaram muito. Interrogada se alguma vez teve medo que lhe acontecesse qualquer coisa, a cantora admitiu que sempre esteve consciente de que podia ficar sem falar, portanto, houve algum estudo e preocupação. “Eu sabia que ia ficar bem, podia ficar sem falar. A questão era mais: ‘A voz é daquilo que eu vivo, a minha vida!’. Sabia que ia ter de reinventar uma outra vida. Sentia medo e tristeza porque a música é, de facto, uma companhia enorme. Mas eu sou música, não sou só cantora. Senti que a podia tocar de outra maneira”, lembrou.
Depois de analisar o simbolismo por trás do problema (uma cantora que pode ficar sem cantar), voltou à sua verdadeira natureza – a de não falar tanto –, para se poupar. Por isso, em 2009, fez uma pausa na carreira. “Na altura eu não falei: ‘Porquê eu?’. Mas sim: ‘Porque não eu?’. Alguém tem de ser, não é? (…) Eu acho que muitas coisas que me vão acontecendo me são familiares, porque quando me vão acontecendo a mim, parece-me natural. Porque não eu? Não fiquei revoltada”, garantiu. Em 2017, ao i, a cantora acrescentava sobre a mesma questão: “Tenho a criação da Igreja, tenho um contacto espiritual muito forte, uma relação com as coisas que não são pragmáticas muito forte, então não me assusto facilmente. Claro que choro, zango-me, grito. Para já foi um grande alívio porque pude cancelar a agenda com justa causa, não tive que pagar nada a ninguém e ninguém ficou chateado comigo (risos). Tinha uma agenda nas costas enorme para os dois ou três anos seguintes”.
Entre duas culturas Sara Tavares nasceu em Lisboa, em 1978, filha de cabo-verdianos. No entanto, foi criada no Pragal, por uma avó adotiva portuguesa e branca, vivendo entre e com duas culturas. A “avó Eugénia”, chamava-lhe assim, “fazia bacalhau, ervilhas com ovos escalfados, via novelas. E, de repente, tinha a minha mãe completamente afro”, lembrava na mesma entrevista, falando da sua mistura cultural. “Ia passar as férias com a minha mãe, que se tinha separado do meu pai e que foi viver para o Algarve”, explicou. Sara chegou a ficar 18 anos sem ver o seu pai que depois da separação, regressou a Cabo Verde.
Começou a tocar e cantar com nove anos. “Tirei o autocolante de uma embalagem de desodorizante – lembro-me da cor e tudo, era verde, daquela marca Fá – e foi o meu microfone durante muito tempo”, revelou. Adorava a Whitney Houston e outros cantores negros americanos, como Stevie Wonder, Michael Jackson e Tina Turner. “Percebi que eles vinham da Igreja, comecei a prestar atenção, a pensar de que igreja viriam, porque a minha avó, como uma típica portuguesa, levava-me sempre à Igreja Católica, mas lá não se passava nada da música que via, até que percebi que vinham de igrejas evangélicas. Então comecei a procurar e com 13 ou 14 encontrei uma igreja batista em Almada, fui lá à procura do gospel, à espera de gente a bater palmas e ainda não era nada daquilo (risos)”, lembrava sobre o período em que realmente se começou a interessar pela música.
A sua carreira começou com a vitória na final da primeira edição do programa da SIC, Chuva de Estrelas, em 1994, com um tema de Whitney Houston. No mesmo ano, venceu o Festival da Canção da RTP com o tema Chamar a Música, o que lhe abriu as portas à Eurovisão, onde conquistou o oitavo lugar.
A primeira viagem que fez a Cabo Verde foi feita com o Presidente Aníbal Cavaco Silva, depois de vencer o programa da estação pública. Ou seja, teve que ganhar um concurso para conhecer a terra dos seus pais. “É tudo muito irónico!”, disse em 2017.
Dois anos depois, estreou-se com o álbum Sara Tavares & Shout. E nas duas décadas seguintes, editou vários álbuns que a aproximaram das suas raízes cabo-verdianas, com destaque para Balancê, em 2005, que lhe valeu um disco de platina e uma nomeação como Artista Revelação nos prémios BBC Radio 3 World Music. Em 2011, recebeu o Prémio de Melhor Voz Feminina nos Cabo Verde Music Awards e, no ano seguinte, deu continuidade à digressão internacional Xinti, título do álbum editado em 2009, que lhe valeu também o Prémio Carreira do África Festival na Alemanha. Em 2018 esteve ainda nomeada para os Grammy Latino, na categoria de Melhor Álbum de Raiz, com o quinto e último álbum, Fitxadu, de 2017.