Nazaré. O lugar onde a terra acaba

É conhecida mundialmente pelas suas ondas gigantes. Dentro do seu mar, surfistas já bateram recordes. Este ano, engoliu a sua primeira vítima. No entanto, nada a faz perder a beleza. No princípio do mês, arrancou precisamente a época de ondas gigantes da Liga Mundial de Surf (WSL).

É tranquila e ideal para quem gosta de lugares pacatos, junto da natureza. A sua população sempre esteve ligada ao mar e também sempre foi muito agarrada à fé. É conhecida pela “vila onde a terra acaba e o mar começa”. E, apesar de ser uma cidade portuguesa pequena com cerca de 15 mil habitantes, o mundo inteiro reconhece-a pelas ondas gigantes onde surfistas têm batido recordes. Em 2020, o alemão Sebastian Steudtner bateu na Nazaré o recorde mundial da maior onda surfada, com 26,21 metros. No lado feminino, é a brasileira Maya Gabeira a detentora do título do Guiness, com uma onda de 22,40 metros, também ela apanhada na Praia do Norte, no mesmo ano.

No princípio do mês, arrancou precisamente a época de ondas gigantes da Liga Mundial de Surf (WSL) que decorre até 31 de março de 2024, com as provas da Nazaré, em Portugal, e de Jaws, no Havaí (EUA).

Segundo a própria entidade, a competição no famoso Canhão da Praia Norte, decorrerá por equipas de dois elementos – com recurso a jet-skis –, e contará com os surfistas portugueses Nicolau von Rupp (em parceria com o brasileiro Pedro Scooby), bem como com a dupla 100% portuguesa João de Macedo e António Silva. Caso alguma das nove equipas do quadro oficial não consiga participar no evento, a equipa formada por António Laureano e Pierre Caley, de França, avançará.

Jaws, na ilha de Maui, terá um formato diferente, com 24 surfistas masculinos e 12 femininos competindo individualmente, sem o auxílio de jet-skis.

‘Nic’ von Rupp é o único atleta português convocado para a prova no Havaí, tornando-se assim o único surfista de Portugal a competir em ambos os eventos do circuito de ondas gigantes da WSL.

O fenómeno por trás das ondas gigantes

Mas por que razão esta região tem ondas desta dimensão? Segundo o Instituto Hidrográfico, órgão da marinha portuguesa, a ondulação do largo que chega à zona costeira propaga-se mais rápido sobre o Canhão da Nazaré, onde a água é mais profunda, do que na plataforma continental adjacente, onde a água é relativamente pouco profunda. O Canhão da Nazaré é um canhão subaquático na costa da Nazaré no Oceano Atlântico Ocidental e detém uma profundidade de pelo menos 5.000 metros e uma extensão de 230 km. “Esta diferença na propagação da onda dependendo da profundidade sobre a qual ela se move modifica a orientação das linhas de cristas e cavas (dizemos que a onda é refratada pela topografia, tal como os raios de luz são refratados quando passam do ar para a água), criando zonas onde a onda converge”, explica o texto do instituto, acrescentando que esta convergência “focaliza a energia da onda o que se traduz-se numa amplificação da mesma”. E, esse processo, parece ser “particularmente eficaz” na zona ao largo da Praia do Norte, durante os períodos de ondulação predominante de Noroeste ou de Oeste.

De acordo com as simulações realizadas pelo Instituto Hidrográfico, uma onda ao largo com 10 metros de altura pode ser amplificada por este processo, atingindo cerca de 20 metros na área da Praia Norte. “Este processo é comum em outros canhões submarinos mas o que parece tornar a Nazaré especial, estamos agora a começar a compreendê-lo, é o facto de a orientação deste canhão e o modo como ele interceta a linha de costa permitirem que ele modifique as correntes que a própria ondulação cria junto à costa, fazendo com que em certos períodos se desenvolva uma corrente forte que se opõe às ondas”, explica ainda. “Isto proporciona um mecanismo adicional para a amplificação da onda, que assim atinge alturas extremas”, acrescenta.

Por incrível que pareça, só este ano, houve a primeira vítima mortal do Canhão da Nazaré. Em janeiro, Márcio Freire, um surfista brasileiro bastante experiente, conhecido por se lançar às ondas grandes sem apoio de motas de água, morreu aos 47 anos. Segundo o comandante Mário Lopes Figueiredo da Capitania do Porto da Nazaré o brasileiro teria caído durante a prática da modalidade.

Os Bombeiros Voluntárias da Nazaré resgataram o surfista “para o areal pela mota de água de apoio à atividade”, uma vez que praticava surf de tow-in – modalidade em que o surfista é rebocado com uma corda para entrar na onda quando já tem o pé na prancha –, numa altura em que se encontrava em paragem cardiorrespiratória. Após várias tentativas de reanimação, contudo, ”não foi possível reverter a situação” e o “óbito foi declarado no local”, tendo o Gabinete de Psicologia da Polícia Marítima sido “ativado para prestar apoio aos familiares da vítima”.

Natural da Bahia, o brasileiro não entrava em competições. No entanto, desafia-se ao tentar surfar as ondas gigantes. “Nunca vivi do surf, nunca ganhei dinheiro com o surf. Tive pouquíssimas vezes, contadas num dedo, dinheiro que veio do surf”, chegou a afirmar ao canal Let”s Surf, naquela que foi uma das suas últimas entrevistas.

Apesar desta ter sido a primeira morte de um desportista no local, muitos já têm sofrido acidentes ao longo dos anos. Em 2020, Alex Botelho perdeu os sentidos. Esteve minutos debaixo de água, inconsciente, mas foi resgatado a tempo e acabou por recuperar. Um ano antes, Pedro Scooby esteve na mesma situação e foi salvo por um surfista alemão. Outro caso foi o de Maya Gabeira que sofreu uma queda aparatosa em 2013, mas a intervenção rápida permitiu a reanimação da surfista brasileira.

O milagre da Nazaré

No que toca à história da Nazaré esta leva-nos a viajar até ao tempo de Jesus Cristo. Segundo os registos, o nome Nazaré tem origem numa imagem da Nossa Senhora trazida da Nazaré da Palestina para este local há muitos séculos – uma pequena imagem em pau de oliveira que representa a Senhora a amamentar o seu bebé.

Reza a lenda que esta imagem terá sido esculpida pelo próprio São José quando Jesus Cristo era ainda uma criança. A escultura veio para Mérida no século V.

Em 711, D. Rodrigo – o último rei dos visigodos –, foi derrotado pelos muçulmanos na Batalha de Guadalete. No entanto, conseguiu fugir e refugiou-se num convento em Mérida, onde estava a imagem de Nossa Senhora. Juntamente com Frei Romano, um monge do convento, os dois acabaram por fugir de Mérida rumo a Ocidente, levando consigo a imagem. Chegando ao local “onde a terra termina”, atualmente o Sítio da Nazaré, esconderam-na na rocha e aí ficou durante séculos, até ser descoberta no século XII. Dizem que estes se instalaram no monte Seano, hoje Monte de São Bartolomeu, numa igreja abandonada que lá encontraram. A existência de um mosteiro nas imediações, do qual subsiste a igreja de São Gião, deve ter sido um fator determinante para a escolha deste destino final da fuga. Passado pouco tempo acabaram por se separar para viver como eremitas. O rei ficou, o monge levou consigo a imagem e instalou-se, a três quilómetros do monte, numa pequena gruta no topo de uma falésia sobre o mar.

Um ano depois, D. Rodrigo decidiu abandonar a região, mas o Frei Romano viveu no eremitério subterrâneo até à sua morte. A sagrada imagem de Nossa Senhora da Nazaré continuou sobre o altar onde o monge a colocou até 1182 quando foi mudada para a capela que D. Fuas mandou construir sobre a gruta.

Na manhã de 14 de setembro de 1182, D. Fuas Roupinho, alcaide do Castelo de Porto-de-Mós, resolveu ir à caça junto do litoral, envolto por um denso nevoeiro. Montado no seu cavalo, viu passar um vulto negro e estranho. Pensando ser um veado, perseguiu-o velozmente, acabando por se afastar dos seus colegas. No entanto, quando estava prestes a apanhá-lo, viu-se perante um precipício, sobranceiro ao mar.

Em perigo de morte, reconheceu o local. Estava mesmo ao lado de uma gruta onde se venerava uma imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus. Rogou então, em voz alta: “Senhora, Valei-me!” e, de imediato e miraculosamente, o cavalo parou, fincando as patas no penedo rochoso suspenso sobre o vazio, o Bico do Milagre, salvando-se assim o cavaleiro da morte certa – a queda seria de mais de cem metros.

Há quem acredite que o veado era o demónio que, entretanto, se desfez em fumo. As patas traseiras do cavalo ficaram gravadas no rochedo e, diz o povo, ainda hoje, podem ser vistas.

Depois de descer à gruta para rezar e agradecer o milagre, o homem mandou os seus companheiros chamar pedreiros para construírem uma capela sobre a gruta, em memória do milagre, conhecida como Ermida da Memória que guarda uma réplica do “amuleto”.

Diz-se também que antes de entaipar a gruta, os pedreiros desfizeram o altar ali existente e entre as pedras, encontraram um cofre em marfim que continha algumas relíquias e um pergaminho, que as identificava como sendo de São Brás e São Bartolomeu e se relatava a história da pequena imagem esculpida em madeira, policromada. A imagem original da Nossa Senhora da Nazaré está bem guardada no Santuário da vila.