Policiais. E, lá para o Norte, o sangue vai tingindo a neve de vermelho…

De há uns anos a esta parte um fenómeno irreversível tomou conta da literatura: chamaram-lhe o «Nordic Noir». Na Suécia, na Noruega, na Dinamarca e mesmo na Islândia os autores policiais invadiram o mercado com a força de um vendaval.

Talvez Stieg Larsson (eles dizem Larchon) seja o mais conhecido. Karl Stig-Erland Larsson de seu nome de baptismo, nascido em Skelleftehamn, uma cidadezinha histórica que fica, por assim dizer, quase no sovaco da Escandinávia, aquela parte do mapa que se desenha em curva até se entrar na Finlândia, província sueca de Västerbotten, a pouco mais de 15 km de Skellefteå, banhada pelo rio Skellefte que corre com pressa para se juntar às águas do Báltico. Ainda agora as livrarias portuguesas puseram nas montras e nas prateleiras mais um livro de Stieg que ficou famoso pela sua Trilogia Millenium – Os Homens que Odeiam as Mulheres; A Rapariga que Sonhava com uma Lata de Gasolina e um Fósforo; A Rainha no Palácio das Correntes de Ar – protagonizada pelas suas personagens Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander: A Rapariga nas Garras da Águia. Mas convém acrescentar que Larsson foi substituído na escrita da obra por Karin Smirnoff, uma escritora fino-sueca, tal como já tinha acontecido com a segunda dose da Trilogia Millenium, entregue a David Lagercrantz, famoso pela biografia que fez do jogador de futebol Zlatan Ibrahimovic. Lagercrantz tratou de A Rapariga na Teia de Aranha, O Homem que Procurava sua Sombra e de A Rapariga Marcada para Morrer. A explicação para todas estas substituições entra já aqui ao lado: Stieg Larsson morreu em 2004 e a sua morte quase copiou o que poderia ter sido a morte do seu herói repórter da Millenium, Mikael Blomkvist – aos 50 anos, no dia 9 de novembro de 2004, resolveu que era a altura ideal para emagrecer uns quilos valentes, ele que se alimentava quase diariamente de hambúrgueres e batatas fritas e se tinha tornado obeso, e decidiu desprezar o elevador que o conduzia ao sétimo andar do edifício onde estava instalada a revista que fundou e onde trabalhava, a Expo, um projeto que lhe valeu muitas chatices e diversas ameaças de morte por mexer profundamente com as organizações secretas de extrema-direita na Suécia. Era evidente que Larsson se convencera de que estava bem mais capaz do que de facto estava: ao fim dos sete lances de escada caiu redondo (e redondo é mesmo literalmente o termo) com um ataque de coração. Nessa altura tinha-se atirado de cabeça a um projeto a quatro mãos com a sua esposa, Eva Gabrielsson, que deveria chamar-se A Vingança de Deus mas que, por problemas de herança, nunca chegou a ver a luz do dia.

Stieg Larsson – que passou a assinar Stieg para não ser confundido com o seu amigo, poeta e romancista Stig Larsson – teve um papel fundamental na propagação desse fenómeno ao qual deram o nome de «Nordic Noir», uma corrente de escrita policial baseada nos países nórdicos e que se espalhou por todo o mundo, até mesmo no difícil mercado norte-americano. Prevê-se que Os Homens que Odeiam as Mulheres tenha sido lido por pelo menos um em cada quatro suecos. Nanja que os suecos andem para aí aos pontapés como chineses ou indianos, são apenas pouco mais de dez milhões, mas os livros em que Lisbeth Salender revela toda a panóplia das suas capacidades de dominar a arte da cibernética e da inteligência artificial espalharam-se pela Europa como Kannelbrunnen quentinhos, acabados de sair do forno, isto é uns pãezinhos doces com canela que vão de braço dado com o café como um casalinho de velhotes que passaram a vida juntos.

Isto não é um campeonato, mas…

Haverá quem avance que Jean Edith Camilla Läckberg Sköld merece estar uns lugares acima de Larsson. Quem serei eu para desmenti-los. Isto não é um campeonato, mas parece que para lá caminha. Cada qual apresenta os seus autores favoritos. Camilla Läckberg, nascida em Fjällbacka, Västra Götaland, no dia 30 de agosto de 1974, preferiu sempre a sua terra natal para o desenrolar das aventuras da sua principal dupla de personagens, os inspetores Erica Falck e Patrik Hedström que vivem uma vida tranquila numa Suécia rural onde os crimes se sucedem com laivos de violência inesperados. A Princesa de Gelo; Gritos do Passado; Ave de Mau Agoiro; A Ilha dos Espíritos; O Domador de Leões; A Menina na Floresta e o mais recente O Cuco terão sido os seus livros de maior sucesso em Portugal. Camilla (que também escreve uma série de livros infantis chamada Super-Charlie) não tardou a ganhar a alcunha de Agatha Christie da Suécia e atingir tiragens próximas dos vinte milhões de cópias traduzidas em 35 países. A Princesa de Gelo e Gritos do Passado foram dirigidos por Jonas Grimås em adaptações televisivas de enorme sucesso. Mas, pelo caminho, os vizinhos noruegueses não tardaram a erguer o seu estandarte na figura de Jo Nesbo, nascido a 29 de março de 1960, em Oslo, e inventor de uma figura com algo de grotesco e chamada Harry Hole, um detetive particular que perdeu uma perna na Guerra do Iraque e não tem pejo em abusar da sua força física embora seja uma espécie de sem abrigo, usando as instalações do seu escritório para ir levando uma vida com o seu quê de miserável. Nesbo é, ele próprio, uma figura, um aventureiro por natureza, que tentou a sua sorte como jogador de futebol no Tottenham de Londres, tendo destruído um joelho e sido obrigado a abandonar as suas esperanças de se tornar num craque para sempre. Dedicou-se à música, tocando numa banda chamada I De Tusen Hjem, cumpriu o serviço militar com denodo, viajou longamente pela Austrália, país que lhe libertou a vontade da escrita. Começou por um romance que foi sucesso: Flaggermusmannen (O Morcego). Só depois se resolveu a entrar pelos caminhos do policial, alcançando outro sucesso extraordinário com O Boneco de Neve, já transposto para o cinema.

Numa livraria em Helsínquia

À medida que, lá no Norte, o sangue ia tingindo a neve de vermelho, os autores multiplicaram-se. Em Helsínquia nasceu a ideia de inaugurar uma biblioteca que albergasse as obras de todos. Deram-lhe o nome óbvio de Nordic Noir. Há quem garanta que o responsável por esta onda imparável de policiais nórdicos foi Henning Georg Mankell, natural de Estocolmo, onde nasceu em 1948, e inventor da personagem do inspetor Kurt Wallander. Mankell tem sido um grande ativista em prol dos povos mais desprotegidos, passando muitos anos em Moçambique e tendo, na antiga colónia portuguesa, aberto uma escola de teatro. Foi o inspirador da norueguesa Karin Fossum e do seu Inspector Sejer, tendo surgido pouco depois outro grande sucesso, o do dinamarquês Peter Høeg com Smilla e os Mistérios da Neve. O barco já vogava, então em pleno oceano literário.

Os suecos, que levavam vantagem inicial, trataram de nos vender gente como Arne Dahl, Mons Kallentoft, Åsa Larsson, Liza Marklund, Kjell Eriksson e Börge Hellström; os noruegueses perseguem os seus vizinhos a toda a brida com Kjell Ola Dahl, Samuel Bjørk, Anne Holt, Jørn Lier Horst e Alex Dahl; os dinamarqueses têm um ritmo menos elevado: sobretudo Jussi Adler-Olse e Leif Davidsen; da Finlândia vieram Leena Lehtolainen, Reijo Mäki, Mikko Porvali, Matti Rönkä; a Islândia surgiu surpreendentemente, quase de um dia para o outro, com Arnaldur Indriðason, Yrsa Sigurðardóttir (A Boneca, publicada pela Quetzal é fascinantemente interessante) e Ragnar Jónasson; e até as Ilhas Feroé (Jógvan Isaksen) e a Lituânia (Emilis Vėlyvis) entraram neste monopólio.

Sobra a pergunta fundamental sem a qual esta crónica ficaria incompleta: afinal que têm de especial os policiais nórdicos para atingirem esta dimensão universal? Muitos dos estudiosos da obra dos autores suecos, a que é de longe mais vasta e mais diversificada, falam da nova perspetiva social de um país que se viu, de repente, a braços com uma criminalidade provocada pelas fortíssimas ondas migratórias que abalaram a sociedade sueca de alto abaixo. Outros referem que a linguagem simples e pouco metafórica atinge com franqueza os apreciadores do género. Seja qual for a teoria, estamos perante uma realidade que parece ter vindo para ficar. E que já criou raízes apesar da sua juventude.