Teoria e prática de um Golpe de Estado

Interessante perceber como se debruçaram intelectuais e filósofos sobre o que é uma Revolução, um Golpe de Estado ou a ameaça a um Estado de Direito. Mas mais curioso tentar encaixar a choldra do Eça nos tempos em que vivemos – claramente à beira de um Golpe e Estado.

Golpe de Estado – os franceses universalizaram o termo Coup d’État de tal forma que até os ingleses não se importaram de engoli-lo. Também há que acrescentar, a favor dos franceses, que este foram durante largos períodos da História os maiores especialistas do mundo em Golpes de Estado. Neste caso de Estadão porque até faziam rolar cabeças para os cestos das guilhotinas. A Enciclopédia Britânica, que também é dona do seu muito merecido crédito, define: “Unlike a revolution, which is usually achieved by large numbers of people working for basic social, economic, and political change, a coup is a change in power from the top that merely results in the abrupt replacement of leading government personnel”. Bastante claro, “do you agree, old chap?”. Depois acrescenta: “A coup rarely alters a nation’s fundamental social and economic policies, nor does it significantly redistribute power among competing political groups”. Enfim, a tal metáfora das moscas e da merda que vamos deixar para outras núpcias. Entra depois pelo caminho de variadíssimos exemplos ao qual não foge, por acaso, e por ser tão recente (2017 a 2021), o primeiro impeachment do presidente norte-americano Donald Trump depois da votação de dois terços dos membros da House of Representatives.

Ora bem passemos em vista os acontecimentos e não-acontecimentos que teriam merecido o máximo interesse do divino Eça de Queiroz e do seu amigo Ramalho Ortigão se estivessem vivos, nos dias que correm, nesta ignominiosa choldra, a tal fétida lesma que se espapa à beira Atlântico sob o nome desacreditado de Portugal. A expressão é dele, do Eça. Por minha parte, e tendo em conta o conteúdo e desenrolar dos facto, e por isto ser uma crónica e nenhum presunçoso texto de análise política/criminal, vou dispensar tratar por doutor a maioria das personagens que o é, contendo-me em troca, ainda que com alguma parcela de pesar, em apelidar de bestas muitas daquelas outras que o são, não por opinião mas por diagnóstico. E o debate comigo mesmo torna-se mais equilibrado. Talvez…

Começa-se pela teoria e, depois sim, passa-se à prática. Proponho, para teórico início, que entremos num suponhamos: Lucília Gago, num momento de inusitada irritação, resolve rabiscar num comunicado de investigação em curso que é de opinião de que, por exemplo, Sua Excª. o Presidente da República tem muito que explicar sobre a forma como duas moças gémeas foram tratadas excecionalmente num caso clínico passado no Hospital de Santa Maria e que atingiu verbas de cerca de quatro milhões de euros? Ofendido, o Exmº. Senhor Presidente sente-se acusado de nepotismo e acha que isso o diminuiu perante os portugueses que o elegeram; numa atitude não muito sua, mas enfim, Marcelo Rebelo de Sousa demite-se e, de repente, temos um Primeiro-Ministro demissionário, a cadeira presidencial vazia, e o terceiro elemento da hierarquia do Estado, o presidente de uma Assembleia da República, sem estatura moral para se perfilar num momento em que as eleições já são uma inevitabilidade e não é tido nem achado pelos seus correligionários.

É, como se costumava dizer com ganas no tempo do PREC, o poder a cair à rua. Restam, dirão alguns de vós, continuando a percorrer a tal hierarquia estatal, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Presidente do Tribunal Constitucional. Pois, eis-nos perante um terrível busílis, permitam-me que vos diga. Se a tropa fandanga, à qual até já venderam os quartéis ao preço da uva mijona, não assusta nem o Capuchinho Vermelho, o que dizer da bem mais preocupante necessidade de não deixar esquecer os sábios ensinamentos de Montesquieu sobre a Separação dos Poderes.

Os julgamentos populares!!!

Como estou a escrever em silêncio e não a falar ao mesmo tempo, não me estou a preocupar grandemente com qual infeliz funcionário do fedorento Ministério Público vai ficar hoje até ao nascer do sol entregue à tarefa de andar de roda das minhas comunicações entre Lisboa, Águeda e aquele grupo de olivalenses que faz sempre parte da minha tertúlia quotidiana. Mas, se me escutam, não deixarão de ficar a estranhar minha posição em relação às infames escutas através das quais se faz hoje todo o trabalho de investigação que, in illo tempore, dava água pela barba ao Perry Mason, ou pelo bigode a Hercule Poirot. Os inspectores/esbirros de Madame Lucília podem ser tão gagos como ela, mas têm ouvidos afiados como raposinhos (daí talvez o fedor): ouvem tudo, tomam notas, horrorizam-se e coram como virgens ofendidas perante certas frases e, com elas já transcritas, vão à procura de um juiz que valide a coscuvilhice feita em favor de um Bem Maior.

Num idílico Estado de Direito, no qual todos gostaríamos de ver crescer os nossos filhos e netos, seria o juiz obrigado a validar a autorização para que os mexericos pudessem ser escutados se deles nascesse a desconfiança de algo ilícito. Mas, se assim for, que diabo iriam fazer os fâmulos de Madame Lucília?

Levantarem-se das cadeiras e irem, pelo próprio pé, à procura de indícios e de provas? Que falta de senso. Tive juízes como antepassados em linha direta até mim, pelo que, na brincadeira digo que desde que nasci como juízes ao pequeno almoço. Um deles, meu bisavô Afonso, foi presidente do Supremo.

Aprendi com o meu pai que um funcionário do Ministério Público não valia para um juiz o que um dinamarquês não vale para um marquês. Por isso teve ele de penar para se tornar juiz de Direito como queria, passando por essa subalternidade de MP hoje virada do avesso. Fechem os olhos e imaginem uma sala de tribunal deste país de justiça ascorosa: ali fica ele, o mono, soturno como um abutre, sentado numa mesinha de pinho barato ao lado do magistrado responsável pelo julgamento. Porquê? Afinal não passa de um segundo advogado de acusação, uma figura diminuta num espetáculo no qual deveria estar, isso sim, ao nível do advogado de defesa. Nenhum Estado de Direito, mesmo duvidoso, como os Estados Unidos, alimenta uma grunhice de tal calibre.

Mas, para que a teoria do Golpe de Estado entre, finalmente na prática, se por um mero acaso, a acusação chega à fase de instrução e, ainda  por um maior acaso – geralmente a incompetência e a estupidez andam de mãos dadas – no momento de passar à barra a decisão está tomada. Serás sempre culpado se não provares a tua inocência! O alegado criminoso já pagou pelo seu crime por mais inocente que seja. Porque, neste Golpe de Estado judiciário no qual seremos, tal com os porcos de Orwell, alguns ligeiramente mais iguais do que outros, os animais de quatro patas se levantaram e distribuíram pelos jornais e televisões que, de bocarras aguadas por um osso, tudo o que interessa aos bufos é passar a mensagem: inverter o ónus da prova é uma das estratégias infalíveis dos que promovem Golpes de Estado. Não se iludam: a Choldra não apareceu por acaso. Muitas e muitas gerações alimentaram os velhacos que a ergueram como um facho a arder na noite escura de tanta podridão.