Miss Portugal. Um concurso com 64 anos

De Maria Teresa Cardoso a Marina Machete, muitas têm sido as misses que fazem história no Miss Portugal há 64 anos. Conheça algumas daquelas que mais têm impactado o concurso e as suas experiências no mundo em que as atividades sociais, culturais, de caridade e a beleza dão as mãos.

O concurso Miss Portugal é um evento anual de beleza que visa eleger a representante do país para concursos internacionais, como o Miss Mundo e o Miss Universo. O concurso é conhecido não apenas por celebrar a beleza das participantes, mas também por desempenhar um papel cultural e social significativo em diferentes épocas.

Ao longo dos anos, o concurso Miss Portugal passou por diversas mudanças e evoluções, refletindo tanto as tendências estéticas quanto os contextos políticos e sociais do país. Os anos 70 marcaram um período em que o concurso ganhou grande popularidade, envolvendo não apenas a competição estética, mas também questões políticas e sociais, especialmente relacionadas com as então colónias africanas.

A inclusão de participantes das colónias africanas gerou debates e controvérsias, evidenciando as dinâmicas políticas da época. Além disso, a presença da televisão como um meio de comunicação de massas desempenhou um papel crucial na popularização do concurso, tornando-o um evento nacionalmente assistido e discutido.

No entanto, o contexto político da Revolução dos Cravos, em 1974, interrompeu temporariamente os concursos de beleza em Portugal. A retoma do evento nos anos seguintes, como demonstrado pela eleição de Ana Paula Freitas em 1974, que ocorreu no meio de um período de transição política e social.

Desde então, o concurso Miss Portugal continuou a ser uma tradição, adaptando-se às mudanças culturais e sociais. A seleção da miss envolve critérios que vão além da beleza física, incluindo aspetos como simpatia, elegância, postura e conhecimentos gerais.

O concurso não apenas destaca a beleza das participantes, mas também proporciona oportunidades para as vencedoras se envolverem em atividades sociais, culturais e de caridade durante o seu reinado. Além disso, a miss eleita geralmente representa Portugal em concursos internacionais, promovendo a imagem do país além-fronteiras.

Marina Machete faz história

Começando pela mais recente, Marina Machete, uma hospedeira de bordo portuguesa de 28 anos, fez história ao tornar-se a primeira mulher transgénero a vencer o concurso Miss Portugal. Também foi a primeira mulher transgénero a representar o país no Miss Universo e alcançou a posição de uma das 20 finalistas na competição. O caminho de Marina não foi fácil, enfrentando bullying e obstáculos ao longo da sua jornada como pessoa transgénero. No entanto, destacou a importância da educação na abordagem dessas questões. Marina afirmou que, apesar das dificuldades, o amor da sua família foi mais forte do que a ignorância.

O seu sonho de participar num concurso de beleza parecia inicialmente impossível, mas inscreveu-se no Miss Portugal com a intenção de se preparar, sem expectativas de vitória. Marina agora é uma das vozes ativas pelos direitos trans em Portugal, usando as suas redes sociais, especialmente o Instagram, onde já possui mais de 30 mil seguidores, para desmistificar estereótipos e defender a autenticidade das mulheres trans. A competição Miss Universo deste ano também incluiu outras representantes trans, como Rikkie Kollé da Holanda, mas Marina foi a única a chegar às finalistas. A Miss Universo 2023 foi Sheynnis Palacios, da Nicarágua.

Marina destaca que o foco principal é desafiar a ideia de que mulheres trans precisam de se encaixar em padrões específicos de vida ou aparência. Enfatiza a liberdade de cada pessoa para viver como realmente é. As regras do Miss Universo permitiram a participação de mulheres transgénero a partir de 2012, mas a primeira concorrente trans apareceu em 2018. Marina Machete, ao vencer o concurso, contribui para a quebra de estereótipos e a promoção da inclusão no mundo dos concursos de beleza.

Antes de Marina, em 2022, Telma Madeira, uma modelo portuguesa então com 23 anos, conquistou um feito raro ao posicionar-se entre as 16 semifinalistas do concurso Miss Universo, realizado em Nova Orleães, nos Estados Unidos. Numa entrevista, Telma partilhou as suas lutas, incluindo experiências de bullying na adolescência, e como utiliza a sua visibilidade como manequim para promover a consciencialização sobre saúde mental.

Telma pretende usar a sua conquista para elevar o nome de Portugal na moda e no âmbito social, concentrando-se na defesa da saúde mental. À Delas, expressou gratidão pelo reconhecimento do público e destacou as mensagens positivas que tem recebido. A modelo enfatiza que ser miss vai além da aparência física, permitindo-lhe transmitir mensagens positivas e impactantes para a sociedade. Defende a quebra de estereótipos de perfeição e destaca as mudanças nas mentalidades na indústria da moda, incluindo a aceitação de mulheres com diferentes estados civis no concurso Miss Universo a partir de 2023.

Telma, que enfrentou bullying na adolescência, acredita que as suas experiências negativas a influenciaram positivamente, tornando-a uma fonte de inspiração para outros. Ela encoraja as pessoas a perseguirem os seus sonhos, independentemente de padrões preestabelecidos, e destaca a importância da autenticidade. 

O inédito top-10 para Portugal

Laura Gonçalves nasceu em Caracas, Venezuela, mas é de ascendência madeirense. Aos cinco anos, sonhava em ser Miss Venezuela, mas mais tarde mudou-se para Portugal, onde estudou Arquitetura por um ano antes de se dedicar à Gestão na Universidade Nova de Lisboa. Laura, então com 22 anos, participou no concurso Miss Portugal 2011, vencendo-o e representando o país no Miss Universo 2011, em São Paulo. Surpreendentemente, chegou às dez finalistas, uma classificação inédita para Portugal no concurso.

Apesar de ter vivido a maior parte da sua vida em Caracas, Laura aprecia a segurança e a beleza de Lisboa. Em comparação, descreve Caracas como uma cidade perigosa, com muita desigualdade social e riscos constantes, especialmente para mulheres.

Laura, além de ser modelo, estava focada nos estudos, estando à época a tirar o mestrado em gestão internacional. Sonhava em gerir a sua própria marca no futuro. Apesar de gostar de moda e cuidar da sua aparência, destacava que a atitude é mais importante do que a beleza para uma modelo. A decisão de participar no concurso Miss Portugal foi espontânea, mas a sua atitude e personalidade contribuíram para o seu sucesso no Miss Universo. Após o concurso, Laura compartilhou a experiência de conviver com conorrentes de todo o mundo e a pressão associada ao evento.

Laura Gonçalves, com a sua atitude persistente e determinada, estava focada em alcançar o sucesso na gestão, seja trabalhando para uma empresa de produtos de consumo ou, eventualmente, gerindo a sua própria marca. Recuando algumas décadas através da crónica ‘As misses não têm idade’, da autoria de Helena de Matos, publicada no Público, entendemos que na madrugada de 11 de abril de 1970, um evento televisivo levou as misses para os lares portugueses, com Ana Maria Lucas a ser coroada Miss Portugal. Esse acontecimento, ocorrido no Teatro da Trindade em Lisboa, foi marcado pelo entusiasmo da audiência e pela transmissão posterior do desfile pela RTP. Ana Maria Lucas, elogiada pela imprensa pela sua tez morena, elegância e beleza “bem portuguesa”, tornou-se uma figura destacada nos anos 70.

Antes mesmo de conquistar o título de Miss Portugal, Ana Maria Lucas já atuava como modelo para uma das casas de moda mais prestigiadas de Lisboa, a Ayer. Quando a escolheram como candidata, relutou inicialmente, temendo a desaprovação dos pais. No entanto, eles não se opuseram, e ela participou no concurso, embora sem muita confiança. Mesmo no dia da eleição, não acreditava que venceria. Surpreendentemente, quase desistiu antes de ser coroada, mas foi convencida a retornar ao palco.

Após vencer o concurso nacional, Ana Maria Lucas representou Portugal no Miss Europa, realizado na Grécia. O seu retorno foi marcado pelo reconhecimento da sua simpatia e doce sorriso, além de trazer para Portugal o prestigioso título de Miss Europa. De seguida, participou nos concursos Miss Mundo, em Londres, e Miss Universo.

Apesar da visibilidade proporcionada pelos concursos de beleza, Ana Maria Lucas teve de enfrentar a realidade e seguir em frente. Continuou a sua carreira como manequim, apresentou o Festival da Canção um ano depois, trabalhou numa empresa de moda, tornou-se designer e atuou em telenovelas. Casou-se com o cantor Carlos Mendes e teve dois filhos. Em 2009, Ana Maria Lucas enfrentou um desafio significativo ao sofrer um AVC, que afetou a sua mão direita e a fala.  

Os concursos de beleza, especialmente o de Miss Portugal, estavam a tornar-se eventos de grande popularidade, com a televisão a desempenhar um papel crucial na sua promoção. O sucesso de 1970 levou à decisão de repetir o concurso em 1971, transferindo-o para o Casino Estoril. No entanto, a verdadeira reviravolta aconteceu com a decisão de incluir jovens das então colónias, abrindo espaço para uma dimensão política no universo das misses.

Em 1971, as delegações de Angola e Moçambique chegaram a Lisboa, trazendo não apenas uma beleza exótica, mas também uma desenvoltura e marketing eficazes. Festas foram organizadas em honra das candidatas africanas, destacando-se a presença do merengue, marrabenta e kuela. A jornalista Vera Lagoa, através do Diário Popular, documentou pitorescamente as viagens e participações das misses portuguesas nos concursos internacionais. «Era uma mulher absolutamente livre. A título de exemplo, organizou os primeiros concursos de Miss Portugal. Gostava muito de moda e era extremamente coquete. No fundo, era uma esteta, gostava daquilo que era bonito e que as mulheres portuguesas fossem bonitas», contou Maria João da Câmara, autora do livro Vera Lagoa – Um Diabo de saias, ao i, em 2021.

O lobby moçambicano, liderado por Jorge Jardim, desempenhou um papel crucial na promoção das candidatas moçambicanas. Em 1971, a angolana Celmira Bauleth, conhecida como Riquita, foi coroada Miss Portugal, recebendo uma receção triunfal ao retornar a Angola.

Um concurso de sucesso e polémicas

O sucesso do concurso gerou lobbies político-militares, envolvendo figuras como o general Spínola e Jorge Jardim, que procuravam aproveitar a importância do evento para os seus interesses. O concurso de beleza tornou-se, assim, um terreno onde as dinâmicas políticas de diferentes territórios portugueses se entrelaçavam.

O auge da controvérsia ocorreu em 1972, quando a Guiné entrou na competição com duas candidatas. O general Spínola pode ter usado a sua influência para favorecer as candidatas guineenses. No entanto, protestos à porta do Casino Estoril por grupos feministas questionaram a promoção da mulher associada aos concursos de beleza.

O ano de 1973 foi marcado pela ausência de Angola e Moçambique no concurso, e em 1974, o contexto político da Revolução dos Cravos levou a uma interrupção de cinco anos nos concursos de beleza em Portugal. Ana Paula Freitas, eleita Miss Portugal em 1974, representou uma transição nesse período turbulento, sendo escolhida por um júri popular constituído por turistas no Sheraton.

O universo das misses nos anos 70, com a sua mistura única de beleza, política e eventos sociais, permanece na memória como uma época marcante na cultura portuguesa. As controvérsias, lobbies e a influência política transformaram os concursos de beleza em arenas onde a estética e a política se entrelaçavam de maneira complexa. 

De notar que no final de 2022, Jakapong “Anne” Jakrajutatip tornou-se a primeira mulher a deter o Miss Universo. Magnata dos media e ativista dos direitos das pessoas transgénero, a empresária tailandesa comprou o concurso de beleza – que realizou a sua 72.ª edição no último fim de semana em El Salvador – por 20 milhões de dólares (19,9 milhões de euros).