Das urnas às ruas, os testes à União

A pouco mais de meio ano das eleições para o Parlamento Europeu, os desafios na UE sucedem-se nas instituições, nas ruas e nas urnas. Da Finlândia a Espanha, da Alemanha a França, passando pelos Países Baixos.

Uma sucessão de acontecimentos veio expor divisões entre Estados-membros da União Europeia, num momento de reconfiguração política e em que se multiplicam desafios geopolíticos, económicos e sociais. A Europa a várias velocidades parece hoje uma frase gasta, e a realidade poderá ser a de uma Europa mais fragmentada. Como os acontecimentos desta semana sugerem, a meses das eleições para o Parlamento Europeu, os desafios precipitam-se nas instituições, nas urnas e nas ruas, da Finlândia a Espanha, da Alemanha a França, passando pelos Países Baixos. 

Desalinhados  

O conflito entre Israel e o Hamas veio expor divergências numa UE que tenta falar a uma só voz. 

Numa conferência de imprensa em Rafah, o Chefe do Governo espanhol condenou a “matança indiscriminada de civis inocentes” e afirmou que Espanha (que preside, neste momento, ao Conselho da UE) estaria aberta a reconhecer unilateralmente o Estado da Palestina, mesmo que a União Europeia não o fizesse. O primeiro-ministro belga, Alexander De Croo, afirmou que “Não podemos aceitar que uma sociedade seja destruída como Gaza está a ser destruída”.

Eli Cohen, ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, reagiu acusando Sánchez e De Croo de “declarações falsas” e “apoio ao terrorismo”. 

A afirmação de Sánchez aproxima-o do seu parceiro de coligação Sumar, e colide com a posição de outros Estados-membros, como a Alemanha ou a Itália. Em Barcelona, o vice-presidente do Governo italiano, Antonio Tajani, afirmou que a Itália “não é favorável” ao reconhecimento de um Estado da Palestina sem o acordo de Israel, afirmando que, sem reconhecimento mútuo, a solução de dois Estados não passa de “propaganda inútil” e lembrando que o Hamas é “uma organização terrorista, como a ETA ou as Brigadas Vermelhas”.

‘Pesadelo’ holandês 

A vitória do já veterano Geert Wilders, conhecido pelas suas posições eurocéticas, anti-imigração e anti Islão, é mais uma dor de cabeça para Bruxelas. Embora o caminho para a formação de um Governo se avizinhe longo e difícil e o cenário de saída da UE se mantenha improvável, a vitória do Partido pela Liberdade, membro do grupo europeu Identidade e Democracia, reforça o momentum para a direita soberanista europeia, empenhada no combate às políticas de imigração e aos «burocratas de Bruxelas». 

Pouco tempo depois de vencer as eleições, Geert Wilders entrava em colisão com a Autoridade Palestiniana, a Liga Árabe e a UE, declarando que a solução para o conflito entre Israel e o Hamas seria a deslocação dos palestinianos para a Jordânia. 

Entretanto, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Órban, reagia aos resultados das eleições holandesas com uma publicação na plataforma X: «Os ventos da mudança estão a chegar». E, de facto, a vitória de Wilders reforça os receios de Bruxelas de que os ‘ventos de mudança’ soprem noutras paragens.

Prenúncio alemão

O Governo liderado por Olaf Scholz tem vindo a perder popularidade, enquanto tenta fazer face a várias crises que acentuam divergências no seio de uma coligação cujos membros, sociais-democratas, verdes e liberais, foram duramente castigados nas eleições regionais.  Nas sondagens, a CDU lidera, seguida pela AfD, que teria melhor resultado que qualquer um dos partidos que integram a coligação.

Em ano de contração económica, num contexto de inflação e decréscimo da produção industrial, o Governo foi obrigado a adiar o debate sobre o orçamento para 2024 e a trabalhar num orçamento suplementar, para fazer face a uma decisão do Tribunal Constitucional que invalidou a transferência de fundos especiais (e extraorçamento) COVID para a ação climática. O Constitucional entendeu que a transferência viola a regra do limite da dívida, inscrita na Constituição durante o Governo de Angela Merkel. 

A decisão criou um buraco no orçamento no valor de 20 mil milhões de euros, mas pode pôr em causa um total de 869 mil milhões de euros alocados a ‘fundos especiais’, sobre os quais está ancorada uma série de megaprojetos. As hipóteses que restam são agora a suspensão do travão da dívida, o corte da despesa ou o aumento de impostos. 

Ruas e fronteiras  

Por toda a Europa, clivagens e tensões têm-se deslocado das instituições para a rua. Uma rua que, ao contrário de outras, grita a várias vozes.

Na Irlanda, o coração de Dublin foi tomado por protestos, espontâneos e violentos, depois de um homem de naturalidade argelina esfaquear três crianças e uma mulher junto a uma escola. Os manifestantes adotaram o slogan ‘Irish lives matter’ e queixaram-se de que o Governo não os ouve. Alguns atacaram a Polícia e jornalistas e saquearam lojas. 

Drew Harris, Comissário da Polícia inglesa, atribuiu os distúrbios a uma “fação lunática, hooligan, levada por uma ideologia de extrema-direita”. Após os protestos, o primeiro-ministro irlandês anunciou que ia acelerar a “modernização” da legislação contra o “discurso de ódio”. 

As tensões na origem dos protestos refletem a convergência entre o aumento significativo da população imigrante (nos últimos 20 anos a população aumentou de 4 para quase 5.3 milhões); uma crise do custo de vida e o aumento da criminalidade (segundo dados oficiais, houve um aumento dos crimes de assalto e a taxa de homicídio quase duplicou no último ano). 

E, se o caso alemão lança dúvidas sobre o pacto de estabilidade e crescimento, que terá de ser retomado em 2024 depois do interlúdio pandémico, as ruas de Dublin ou os recentes acontecimentos em França lançam dúvidas sobre o Novo Pacto em Matéria de Migração e Asilo, que a Comissão espera ter fechado antes do término do seu mandato.

Um aumento do número de chegadas de migrantes e refugiados levou a Finlândia a fechar todas as suas fronteiras com a Rússia, com exceção de Raja-Jooseppi. Helsínquia acusa Moscovo de instrumentalizar a imigração como forma de retaliação pela entrada da Finlândia na NATO. Mas a reintrodução de controlos de fronteiras estende-se também dentro do espaço Schengen, onde cerca de 13 dos 27 Estados-membros recorreram à medida para conter fluxos de imigração ilegal. Face ao aumento da pressão na rota dos Balcãs, os ministros do Interior da Alemanha, Áustria, Eslováquia, Hungria, Polónia e República Checa reuniram-se para debater uma estratégia comum. 

Contradições numa Europa polarizada

De fora e de dentro, somam-se os desafios à União Europeia. Os acontecimentos em Espanha testarão as instituições europeias, que deverão pronunciar-se sobre se lesam ou não o Estado de Direito, concretamente o princípio da separação dos poderes. Se o veredito for o de que, como defendem os socialistas espanhóis, se trata de uma questão interna, a UE, que tem criticado duramente os Governos da Hungria e da Polónia, poderá ser acusada de um duplo critério.

A dificuldade em falar no plano geopolítico a uma só voz e as contradições internas crescem num momento que é também de fragmentação política em muitos Estados-membros, abrindo um ciclo que poderá ser de Governos mais instáveis e curtos, e em que a agenda ambiciosa da União choca com as preferências de segmentos importantes do eleitorado.