Só vale dar porrada das amígdalas para baixo

Foi, mais uma vez, o clássico mais duro e violento dos clássicos: uruguaios e argentinos fervem por pouco.

No passado dia 17, no Barrio de La Boca, em Buenos Aires, no velhinho La Bombonera, Argentina e Uruguai voltaram a encontrar-se num dos jogos mais clássicos de todos os clássicos. A peleja contava para o apuramento para a fase final do próximo Campeonato do Mundo, o Uruguai teve o desplante de ir bater o seu odiado adversário no terreno deste, por 2-0, golos de Ronald Araújo e Darwin Nuñez, e não faltaram as picardias do costume que acabaram por descambar em cenas de violência. Podem dizer os mais práticos de que cenas de violência entre argentinos e uruguaios por causa do futebol são tão notícia como bombas na Faixa de Gaza, mas nem sempre foi bem assim. Afinal as duas celestes, a Celeste Olímpica (Uruguai) e a Albiceleste (Argentina) já se defrontaram 212 vezes (segundo os registos da FIFA), o que é obra, convenhamos, e era o que faltava que tivessem existido cenas de pancadaria nessas mais de duzentas partidas. Por curiosidade se acrescente que a Argentina tem uma vantagem muito grande sobre o seu vizinho pequenino (176 215 km² e 3.420 milhões de habitantes contra 2.780.400 km² e 47,328 milhões de habitantes) – 96 vitórias e 63 derrotas com 53 empates pelo meio.

‘El Clásico del Río de la Plata’: é assim que que os jornais se referem ao confronto tendo em conta que Buenos Aires e Montevidéu ficam cada uma de seu lado da foz desse rio que o navegador Juan Díaz de Solís julgou ser um mar quando entrou pela baía em 1515. Antigo como a noite dos trovões, disputou-se pela primeira vez no dia 16 de maio de 1901 em Montevidéu e os argentinos venceram por 3-2. Primeiro passo para uma rivalidade que atingiu momentos brilhantes (as duas seleções foram finalistas do primeiro de todos os Mundiais, em 1930, vitória do Uruguai por 4-2) e passou por miseráveis demonstrações de animalidade. Dizem alguns analistas que o futebol agressivo praticado tanto por uns como por outros, estilo canela até ao pescoço – Nelson Rodrigues, o grande cronista brasileiro, escreveu uma vez que para argentinos e uruguaios dava porrada em tudo o que ficasse das amígdalas para baixo –, conduz a excitação animalesca dos adeptos e à consequente libertação dos instintos mais básicos. Mas nem sempre foi assim. Ah!, pois não! Houve tempos em que Uruguai e Argentina ficaram marcados por um futebol maravilhoso que deixou a Europa fascinada. Em 1924, nos Jogos Olímpicos de Paris, com os uruguaios a vencerem o torneio graças à técnica elegante e incisiva de gente como José Leandro Andrade,Pedro Arispe, Pedro Casella, Pedro Cea, José Nasazzi, Pedro Petrone, Hector Scarone e companheiros, e quatro anos mais tarde, com a mesma equipa a defrontar e a vencer a Argentina na final olímpica (2-1) que apresentava artistas da qualidade de Luis Monti, Pedro Ochoa, Rodolfo Orlandini, Raimundo Orsi, Fernando Paternoste ou Domingo Tarasconi. Atingira-se um dos pontos mais altos do futebol-arte.

Primórdios

As confusões de encontros entre Argentina e Uruguai começaram logo no primeiro dos jogos que não é reconhecido pela FIFAporque não foi organizado por nenhuma das federações e sim pelo Clube Albion (o mais antigo de todos os clubes uruguaios), tendo mesmo o Uruguai jogado com camisolas do clube. Assim sendo, para quem liga a estes preciosismos que para mim não passam de um revisionismo bacoco, o primeiro Clássico de La Plata oficial terá tido lugar no dia 20 de julho de 1902, em Paso del Molino, Uruguai, e com uma goleada argentina de 6-0. Um tempo no qual ambas as seleções recrutavam para os seus quadros ingleses que trabalhavam na instalação dos caminhos de ferro e que se destacavam por estarem mais habituados ao ‘association’ que haviam inventado, como por exemplo Charles Dickinson, Edward Morgan ou George (Jorge) Brown. 

Como dizia Pittigrilli, esse mestre do humor: “Pior do que inimigos, eram irmãos!”. Os irmãos do lado de cá e de lá do Rio de La Plata gostam de se provocar, não apenas no terreno de jogo mas igualmente no campo das relações institucionais. Deram brado as declarações do presidente uruguaio Jorge Luis Batlle Ibáñez quando, há pouco mais de vinte anos, proferiu uma frase assassina: “Los argentinos son una manga de ladrones, del primero al último”. Pensava que estava em off, mas as câmaras de televisão apanharam-no em cheio: “¡La Argentina no es el ombligo del mundo! Y no hay nadie en el mundo que necesite de la Argentina para vivir!”. Acendeu-se um tremendo conflito diplomático e, mais uma vez, argentinos e uruguaios tomaram-se de ódio uns pelos outros. Isto a despeito de serem povos irmãos, primos, parentes em todos os graus, tal qual referia Jorge Luis Borges num poema que acabaria musicado como uma milonga: “El sabor de lo oriental/con estas palabras pinto/es el sabor de lo que es/igual y un poco distinto”. É isso que são: iguais mas um pouco diferentes, e apenas isso. Nasceram da mesma colónia espanhola que teve o nome de Virreinato del Río de la Plata, o Uruguai sofreu influência portuguesa por causa da sua fronteira com o Brasil, mas vá lá encontrar-se dicotomias na arquitetura, no vícios dos ‘asados’ e do mate, no próprio sotaque com que falam. Irmãos que se odeiam. Já vem do tempo das Escrituras…