Maria Callas (1923-1977) Os trilos e os silêncios

Embora lhe bastasse a voz para expressar e desencadear emoções, a sua arte era completa. Maria Callas teve uma vida marcada por escândalos e conflitos, e foi sem glória que se despediu dos palcos. A grande diva do século XX nasceu há precisamente 100 anos.

Não faz muito tempo que as imagens conhecidas dos últimos anos de Maria Callas eram relativamente escassas. Limitavam-se a um ou outro instantâneo captado pelos paparazzi em Paris, cidade onde vivia, e, sobretudo, às fotos e filmagens dos recitais da malfadada tournée de 1973-74 com o tenor Giuseppe di Stefano, seu colega de palco e estúdio na década de 1950, e de cama, na época da digressão. Frágil e sem voz, mas a quem, por fugazes momentos, ainda se entrevia o génio dramático-musical que a distinguira, foi sem glória que a maior cantora lírica do século XX se despediu dos palcos, incapaz de concluir o périplo mundial. Não obstante, os inúmeros fãs que enchiam os recitais eram pródigos em generosidade e afeto. Finalmente, em 2017, 40 anos após a sua morte, o documentário Maria by Callas de Tom Volf, baseado em fotos e filmes inéditos, e cartas íntimas, revelou um pouco mais da vida da soprano. Recordo-me do deslumbre que foi ver, pela primeira vez a cores, as filmagens da sua atuação no Teatro de São Carlos e da chegada ao aeroporto de Lisboa, em 1958. A ser lançado em 2024, Maria, um filme de Pablo Larraín com Angelina Jolie no papel principal, mostrará a diva nos seus anos finais. Em livro, as biografias têm-se sucedido, contudo, de Callas, a mulher, persistirão sempre facetas impenetráveis; de Callas, a artista, a aura e a lenda são indeléveis.

Quando partiu para a derradeira digressão – persuadida por um Di Stefano que, com uma filha a morrer de cancro, precisava urgentemente de dinheiro – já tinham passado oito anos desde que interpretara, em Londres, a sua última ópera, Tosca. Os fãs tinham feito fila durante 48 horas para adquirir bilhetes, tendo os lugares de pé chegado a custar 50 libras no mercado negro, o que equivaleria hoje a mais de 1400 euros. A crítica, porém, não a poupou. No Evening Standard pôde ler-se: «Ontem só se viram as cinzas, a chama extinguiu-se». A seu lado, no papel do sádico Scarpia, estava outra figura lendária, o barítono Tito Gobbi, com quem, um ano antes, na mesma Royal Opera House, fizera o II ato da ópera para uma transmissão televisiva. A gravação, felizmente disponível em DVD, mostra-nos uma Callas em sobrevoltagem («pura eletricidade», como Leonard Bernstein a definia). Num verdadeiro confronto de titãs, a mítica dupla confere à obra de Puccini uma intensidade emocional dificilmente igualável.

Os anos de formação e o arranque da carreira

Nascida em Manhattan, Nova Iorque, a 2 de Dezembro de 1923 – faria depois de amanhã 100 anos –, Maria Ana Cecília Sofia Kalogeropoulos, filha de pais gregos que procuraram uma vida melhor no Novo Mundo, cedo foi iniciada na música, por vontade da mãe, Evangelia. Reconhecendo na filha dotes para o canto, tentou fazer dela uma estrela infantil. O pai, um farmacêutico a quem os negócios nunca prosperariam, para se integrar na sociedade americana simplificou o apelido para Kalos, e mais tarde para Callas. Em 1937, com o casamento desfeito, Evangelia regressou a Atenas com Maria e a filha mais velha, Jackie. Primeiro em aulas particulares e, posteriormente, no conservatório, foi aí que Maria, uma adolescente com borbulhas e óculos fortemente graduados, se preparou para a carreira operática que a celebrizaria e que, por vezes, a ajudaria a esquecer-se da baixa autoestima que a acompanhava desde criança. A sua grande mestre foi a soprano de coloratura Helvira de Hidalgo, a quem sempre seria grata. Batalhadora incansável, a jovem Maria entrava no conservatório às dez da manhã e só saía com o último aluno. Ouvia-os a todos – sopranos, mezzo-sopranos, tenores, barítonos … –, sabia as partes de todos, como mais tarde De Hidalgo recordaria.

Após os anos de formação, as suas primeiras atuações foram na Ópera Nacional da Grécia, em papéis secundários. Em 1942, obteve o primeiro papel principal, ironicamente na que viria a ser a sua última ópera, Tosca. A estreia no estrangeiro, em 1946, deu-se na Arena de Verona, como protagonista de La Gioconda. Foi nesta cidade italiana que conheceu o futuro marido e agente, Giovanni Battista Meneghini, um industrial 27 anos mais velho do que ela. Após o casamento, em 1949, passou a residir em Itália. Meneghini, que colocou todos os bens em seu nome, acabaria por ficar com mais de metade do dinheiro da mulher. Ela descrevê-lo-ia como um parasita que não tinha um tostão e que se fazia passar por milionário.

Tendo-se estreado no La Fenice de Veneza em 1947, com Tristano e Isotta (era comum na época cantar-se Wagner em italiano), foi seguidamente contratada por este teatro para interpretar, no início de 1949, a Brunilde de La Valchiria. Deu-se, porém, o caso de a soprano que cantava a Elvira de I Puritani ter adoecido. Incapaz de encontrar uma substituta, o célebre maestro Tullio Serafin pediu a Callas que assumisse o papel. Foram em vão os rogos de que, em seis dias, não conseguia aprender a nova partitura, além de ainda ter que interpretar Brunilde três vezes – um desafiador papel de soprano dramático, nos antípodas vocais do soprano de coloratura de Elvira. Serafin retorquiu que tinha a certeza de que ela estava à altura do desafio. O sucesso alcançado por Callas revelou a sua capacidade de conferir às óperas do período do bel canto, como I Puritani, cheias de notas estratosféricas e requisitos de grande fluidez de ornamentação vocal, uma intensidade dramática inusitada. Estava assim aberto o caminho que a levaria a interpretar obras de compositores como Bellini, Rossini, Spontini e Cherubini, algumas delas há muito caídas no esquecimento.

Da estreia no La Scala à polémica de Roma

Estreou-se no La Scala de Milão em 1951, em I Vespri Siciliani. Este seria o seu principal teatro ao longo da década de 1950, um período que ficou marcado pela colaboração com Luchino Visconti. Foi ele quem a dirigiu em produções de La Vestale, La Traviata e Anna Bolena, entre outras, que se tornariam lendárias. Entretanto, em 1954, teve a sua estreia norte-americana na Lyric Opera de Chicago, com Norma. Dois anos depois, interpretaria o mesmo papel na Metropolitan Opera, não sem ser vaiada e bombardeada com vegetais pelos detratores, que criticavam o vibrato da voz e a separação entre as suas ditas ‘três vozes’. Só voltaria a cantar no mítico teatro nova-iorquino nove anos depois – duas récitas de Tosca –, porquanto em 1958 teve um desentendimento com o intendente, o idiossincrático Rudolf Bing, que pretendia que alternasse La Traviata com Macbeth, óperas de exigências vocais muito distintas. Callas terá respondido que a sua voz não era um elevador.

Os escândalos, reais ou fabricados pela imprensa, explorando o temperamento volátil da artista, foram uma constante. Em particular, a relação conturbada com a mãe fez correr muita tinta. Numa ocasião, Callas disse aos jornalistas que a mãe bem poderia atirar-se do telhado, pois ela não a iria socorrer dos seus problemas económicos. Evangelia, ambiciosa e sem escrúpulos, via na filha uma fonte de receita, tendo chegado a publicar o livro A Minha Filha Maria Callas. Só tardiamente a soprano se libertaria do controlo e da chantagem da progenitora, que chegou a desejar que a filha tivesse um cancro na garganta.

Foi exatamente dois meses antes da sua vinda a Lisboa que se deu o polémico episódio da Ópera de Roma. Numa récita de gala de Norma, com a presença do Presidente de Itália, Callas retirou-se no final do primeiro ato, alegando não se encontrar bem. Tinha os brônquios e a traqueia inflamados, mas a imprensa não lhe perdoou e atacou-a sem piedade. Também nesse ano entrou em conflito com Ghiringhelli, o diretor do La Scala, teatro a que só regressaria em 1960, para interpretar o papel de Paolina em Poliuto. O registo de uma dessas récitas, ao lado de um portentoso Franco Corelli, é admirável, ainda que o declínio vocal da diva seja já bem percetível. Tenho que confessar que, apesar de todas as deficiências (começando pelo som), esta seria uma das gravações que levaria comigo para uma ilha deserta. É curioso notar como as interpretações anémicas de José Carreras e Katia Ricciarelli noutra gravação desta ópera de Donizetti nos dão a sensação de tratar-se de uma obra diferente, sem grande interesse.

Soprano absoluto, arte completa 

A voz de Callas nunca foi intrinsecamente bela como, por exemplo, a da sua alegada rival Renata Tebaldi – à qual o maestro Arturo Toscanini chegou a referir-se como ‘la voce d’angelo’ –, nem mesmo era isenta de falhas. Tenho que admitir que fui primeiramente seduzido pela exuberância e aveludado do timbre da Tebaldi. A vocalidade de Callas, completamente diferente, foi algo que só com o tempo aprendi a apreciar. O seu canto é uma combinação singular de agilidade, extensão vocal e expressividade. Para estaúltima contribuem uma panóplia de cores e timbres distintos, bem como subtis variações na intensidade e na dinâmica da emissão. Até ao início do século XIX, existira a categoria de soprano sfogato, referente a contraltos ou mezzo-sopranos capazes de atingir a tessitura de soprano de coloratura. Exemplos disso foram Maria Malibran e Giuditta Pasta, para quem várias óperas do bel canto foram criadas. Callas, que, com treino, expandiu a amplitude vocal, pertencia a esta liga de cantoras, por vezes designadas por sopranos absolutos. Não será, pois, de admirar que tenha feito renascer o estilo do bel canto de outrora, assim como várias obras esquecidas. Escute-se uma Amelita Galli-Curci ou uma Luisa Tetrazzini e facilmente se notará a ligeireza com que se passara a abordar o repertório belcantista. Embora a Callas bastasse a voz para expressar as emoções, a sua arte era completa. Com uma representação estilizada e marcada pelo classicismo, o seu rosto e corpo refletiam toda a ação em cena. Rudolf Bing terá dito que um simples gesto da sua mão valia mais do que todas as gesticulações de qualquer outro artista durante um ato inteiro.

Declínio vocal e últimos anos

Com 1,74 m de altura, chegou a pesar 90 kg, mas ao longo de 1953 e início de 1954 perdeu 36 kg, transformando-se numa mulher de silhueta elegante e aparência sofisticada. A voz, porém, também mudou, encolhendo e acentuando-se-lhe o acidulado do tom, com a agravante de as passagens nas notas superiores serem doravante mais problemáticas. O declínio vocal de Callas tem sido amplamente discutido, sendo frequentemente atribuído ao uso excessivo da voz, à perda de autoconfiança e até a uma menopausa precoce. Alguns especialistas em voz têm defendido que resultou diretamente da redução da massa corporal, dado o repertório dramático que interpretava exigir um forte suporte muscular para sustentação da respiração. Em anos mais recentes, dois médicos italianos concluíram que a soprano terá sofrido de dermatomiosite, uma doença inflamatória crónica que afeta os músculos.

Em 1957, Callas foi apresentada ao magnata grego Aristóteles Onassis. O romance que se seguiu alimentaria por muito tempo os apetites sensacionalistas da imprensa mundial. Dois anos depois, separou-se do marido e as aparições artísticas tornaram-se progressivamente mais raras. Segundo algumas fontes, terá tido um filho de Onassis, mas a criança terá morrido poucas horas após o parto. A relação chegou ao fim em 1968, com o casamento do magnata com Jacqueline Kennedy. Terão, no entanto, continuado a encontrar-se secretamente.

Medea, a par de Norma e Tosca, foi uma das óperas que a soprano interpretou nos últimos anos da carreira. Em 1969, dirigida pelo realizador italiano Pier Paolo Pasolini, também desempenhou no cinema o papel (não cantado) da implacável figura mitológica. Contudo, apesar de bem recebido pela crítica, Medeia não conquistou o favor do público. Os últimos anos da soprano foram passados maioritariamente em reclusão, vindo a falecer de um ataque cardíaco no dia 16 de setembro de 1977, com apenas 53 anos. As suas cinzas, após terem permanecido no columbário do Cemitério Père-Lachaise e de terem sido roubadas, foram recuperadas e espalhadas no Mar Egeu, conforme era seu desejo.

A série de master classes que deu na Julliard School, em Nova Iorque, entre em 1971 e 1972, serviu de inspiração a Terrence McNally para a peça Master Class (1995). Três anos após a sua criação, esta obra teatral foi interpretada em Lisboa pela atriz Rita Ribeiro e pela soprano Lia Altavilla, numa encenação de Filipe la Féria. McNally é também o autor de A Traviata de Lisboa (1985), uma peça que, tendo como ponto de partida o lançamento no mercado da gravação da Violetta lisboeta de Callas, aborda questões relacionadas com a comunidade gay. O Teatro Experimental de Cascais levou-a à cena em 1997.

Gravações para uma ilha deserta

Correndo o risco de parecer mais uma mudança de casa do que uma fuga para uma ilha deserta, além de Poliuto, como já referi, as outras gravações de Callas que levaria comigo (em CD, evidentemente!) seriam Lucia de Lammermoor (a de Berlim, ao lado de Di Stefano e sob a direção de Karajan; todos em estado de graça), La Sonnambula (dirigida por Bernstein), La Traviata (a do São Carlos, claro!). Levaria também qualquer uma das suas interpretações de Medea, mesmo a de estúdio, e a Tosca de 1953. O álbum Cenas de Loucura e os outros dois com árias de Verdi são também indispensáveis. No segundo dos volumes verdianos, é admirável como o pequeno fio de voz que lhe restava em 1969 ainda nos emociona tão intensamente. Nestes últimos registos, porém, não é tanto a vulnerabilidade da Medora de Il Corsaro que nos toca, é antes a de Callas; é por ela que sentimos compaixão.

Um dos filmes que a televisão suíça costuma exibir no Natal é o já clássico O Beijo de Tosca (1984), de Daniel Schmid. Trata-se de um documentário profundamente humano e sensível que o realizador helvético produziu na Casa de Repouso Giuseppe Verdi, um lar para músicos idosos que o grande compositor italiano criou em Milão, onde ele próprio está sepultado, ao lado da mulher, a cantora Giuseppina Strepponi. Tive a enorme felicidade de conhecer pessoalmente Daniel Schmid (1941-2006). Conhecendo a sua paixão por Callas, enviei-lhe a gravação de La Traviata de Lisboa, na edição da RDP. Um dia, fui a sua casa em Zurique, e, para meu espanto, verifiquei que a caixa de CDs que lhe oferecera estava sobre um móvel da sala, colocada ao alto e encostada à parece, com o rosto da soprano bem visível. Por cima, pendurado, havia um retrato autografado de La Divina. O conjunto era quase como um altar. Perguntei ao Daniel se alguma vez tinha pensado em fazer um filme sobre Callas. Respondeu-me que nos deuses não se toca.