A vida de Henry Kissinger, marcada pela teimosia de ver o mundo tal como ele era e não como deveria ser, é indissociável do século americano, um século que o fez, mas que ele também ajudaria a fazer. Admirador de Metternich e Bismarck, temperou o idealismo americano com o realismo do velho mundo, consciente de que a condição humana está irremediavelmente sujeita à mudança e à discórdia.
Os anos decisivos
Henry, nascido Heinz, veio ao mundo em maio de 1923, em Fürth, numa família judia de classe média e numa Alemanha em convulsão. Poucos meses antes, em novembro de 1923, acontecera o Putsch de Munique que, tendo levado Hitler para a prisão, marcava o início da sua ascensão ao poder. Em 1938, a sua família decide abandonar a Alemanha e ir para os Estados Unidos. É em Washington Heights que Kissinger conclui o liceu e começa a estudar contabilidade à noite, trabalhando de dia numa fábrica de escovas de barbear.
Mas, aos 20 anos, o fã dos Yankees e do lendário Joe DiMaggio, foi chamado para o Exército. Os anos que se seguiram mudariam a sua vida. Desde logo porque, segundo o próprio, «o mais significativo sobre o exército foi que me fez sentir americano». Mas também porque foi aí que chocou de frente com a História. Combateu na Batalha das Ardenas, de onde escreveu aos pais falando sobre «a lama que se arrasta pelo teu cabelo, a tua comida, os teus dentes, a tua roupa e, por vezes, a tua mente». Este embate com a História teria um enorme impacto no jovem Kissinger, como o próprio daria a entender mais tarde: «Os altos cargos ensinam sobre o processo de decisão, mas não sobre a substância. Consomem capital intelectual, mas não o criam. A maior parte dos que ocupam esses lugares deixam os cargos com as mesmas perceções e ideias com que os assumiram; eles aprendem a tomar decisões, mas não aprendem que decisões tomar».
Tendo como língua maternal o alemão, seria transferido para os serviços de contrainteligência por recomendação de um homem com quem estabeleceria uma relação que também mudou a sua vida: «Ao longo das décadas seguintes, [Fritz] Kraemer moldou a minha leitura e o meu pensamento, influenciou a minha escolha de universidade, despertou o meu interesse na filosofia política e na história, inspirou a minha tese de licenciatura e doutoramento, e tornou-se uma parte indispensável da minha vida». E, graças também ao impulso de Kraemer, foi para Harvard, onde se doutorou com uma tese sobre a diplomacia na Europa pós-Napoleão, publicada em livro em 1957 com o título Um Mundo Restaurado. A diplomacia, concluía Kissinger, era a estabilidade assente no equilíbrio de forças. E o objetivo da política externa não era criar um mundo melhor, mas estabelecer e manter a ordem.
O século americano e o temperamento europeu
Mas o livro que acelera o seu caminho para o poder seria Armas Nucleares e Política Externa onde, perante a necessidade de conter e controlar uma guerra nuclear, recupera as lições do século XVIII.
Kissinger tornara-se próximo de Nelson Rockfeller, Governador de Nova Iorque e membro da ala liberal do Partido Republicano. Em 1964 e em 1968, apoiou-o na competição pela nomeação republicana. Mas o liberal foi derrotado por Richard Nixon, que o convida para assessor de Segurança Nacional. Entre 1969 e 1977, Kissinger foi assessor de Segurança Nacional e secretário de Estado, chegando a acumular os dois cargos.
Em Diplomacia, Kissinger refere que, «quase como que de acordo com uma lei natural», em cada século parece existir «um país com o poder, a vontade e o ímpeto intelectual e moral para moldar todo o sistema internacional de acordo com os seus valores». E o século XX foi o século americano. Mas em 1969 era razoável pensar que o desfecho da História seria outro. Era o fim do boom económico do pós-Guerra e havia sinais de um declínio do poder americano numa ordem internacional marcada por múltiplas crises, num contexto de Guerra Fria. Para o bem ou para o mal, os anos que se seguiram travariam esse declínio.
E os sucessos (e fracassos) da sua política externa foram muitas vezes síntese entre a razão de Estado que tinha as suas origens no velho continente, e a pujança do novo mundo. O pragmatismo da realpolitik de Kissinger temperava o idealismo e confiança americanos, e a tentação de moldar o mundo como a América queria que ele fosse, e não como ele realmente era. O interesse nacional, mais do que a ideologia, determinariam, em cada momento, o amigo e o inimigo. Kissinger nunca se rendeu à doutrina do excepcionalismo americano. Em 1979, Peter Dickinson concluía, tendo analisado a tese de licenciatura de Kissinger sobre o significado da História a partir de Spengler, Toynbee e Kant, que este não entendia que a América fosse a «cidade brilhante na colina», a quem a História reservara uma missão e um lugar especiais.
E Kissinger, ao contrário de Nixon, sobreviveria ao Watergate. Nas suas memórias, o Presidente Nixon admitia que a combinação entre «o filho de um merceeiro de Whittier e o refugiado da Alemanha de Hitler» era «improvável». Mas foram precisamente as diferenças entre os dois, segundo Nixon, que «fizeram a parceria funcionar». Em 1973, segundo uma sondagem da Gallup, era o homem mais admirado na América. Sobre o Watergate, diria que foi um tempo em que a sua vaidade se ressentiu, mas que «a emoção predominante era a da premonição da catástrofe».
A saída possível e aproximação estratégica
De De Gaulle a Zhou Enlai, de Golda Meir a Anwar Sadat, de Pinochet a Mao Tse Tung, Tatcher, Gorbachev ou Helmut Schmidt, Kissinger conheceu e privou com grandes líderes do século XX.
Do seu legado, o Vietname será talvez o ponto mais ‘controverso’. A Administração Nixon herdara uma bomba-relógio, com quase 550.000 soldados americanos no Vietname. O tema tinha-se tornado fator de contestação e mobilização internas e internacionais, exigindo-se uma retirada imediata. O primeiro grande teste da Administração seria garantir a saída, sem com isso sofrer uma derrota (militar ou diplomática) que enfraquecesse a América perante a União Soviética e a China. E os Estados Unidos, para pressionar Hanói, avançaram com bombardeamentos no Camboja e no Vietname do Norte.
Outro momento crucial, mais feliz, da carreira de Kissinger aconteceu em 1971 quando, em segredo, partiu do Paquistão para Pequim, tornando-se o primeiro político americano a visitar a China depois da ascensão ao poder do Partido Comunista. O sucesso da operação, impossível nos dias de hoje, dependia da discrição.
Em 17 horas, Kissinger conseguiria assegurar o encontro histórico entre Mao Tse Tung e Richard Nixon, que teria lugar no ano seguinte. A China, país sobre o qual pouco sabia, impressioná-lo-ia. Nas suas memórias, descreveu a viagem como «um evento verdadeiramente extraordinário, simultaneamente inédito e emocionante, atípico e esmagador» que lhe devolveria «a inocência desses anos em que cada dia era uma aventura preciosa na definição do significado da vida».
O encontro abria uma nova fase nas relações entre Washington e Pequim, assente na lógica de ‘triangulação’, i.e., em assegurar que a China e a Rússia não se tornariam mais próximas uma da outra do que dos Estados Unidos, mediante a exploração das rivalidades sino-soviéticas. E marcou também o início da política de ‘ambiguidade estratégica’ dos Estados Unidos face à questão de Taiwan, e o despertar do gigante chinês, que iniciando um caminho progressivo de abertura ao mundo acabaria por tornar-se uma superpotência.
Contenção e erros de cálculo
Mas a dupla Kissinger-Nixon também teve uma atuação decisiva face à União Soviética. O comunismo avançava não apenas na Europa, com a invasão da Checoslováquia em 1968, mas em outras latitudes. Os Estados Unidos, nesta fase, implementariam a política de détente, mediante as Conversações sobre a Limitação de Armas Estratégicas (SALT) que levariam ao acordo de 1972, e a tentativa de melhorar relações comerciais. O objetivo não era o de converter a União Soviética à economia de mercado e à democracia liberal (conversão que Kissinger, o realista, achava improvável), mas diminuir o risco de um confronto nuclear.
No Médio Oriente, reagindo à Guerra do Yom Kippur, Kissinger inaugurou a ‘diplomacia de vaivém’ mediando acordos entre Israel e os países árabes. Fê-lo sempre numa lógica de servir o interesse americano, que permitiria o restabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a Síria e o Egito, e lançaria as bases para o acordo de paz entre o Egito e Israel, em 1979.
Mas Kissinger também erraria.
Em 1975, a Administração Ford aprovou a invasão e anexação de Timor. De passagem em Jakarta, o Presidente Ford terá dito a Suharto que «compreendia o problema e as suas intenções» e «não o iria pressionar sobre a questão». Kissinger, também presente, fazia apenas uma advertência: «O que quer que se fizesse, deveria ser rápido». No Chile, Kissinger apoiou o golpe de Pinochet, num momento de caos e fratura política marcado pela multiplicação de grupos armados. A lógica era simples, e repetir-se-ia com Reagan: um regime anticomunista serviria melhor os interesses da América.
E houve o engano português. Embora chocando com a historiografia e memória dominantes, que tendem a desvalorizar o tempo de incerteza que Portugal viveu entre 1974 e 1976 e que atingiu o seu pico no verão quente de 1975, os Estados Unidos tiveram um papel importante, senão determinante, na nossa transição para a democracia. Mas Henry Kissinger, que acompanhou de perto o processo, desconfiava da capacidade do Partido Socialista (e de Mário Soares, que descreveu como o ‘Kerensky português’) travarem o comunismo. E chegou a defender a ‘tese da vacina’, segundo a qual a instauração de um regime do PCP em Portugal era um desfecho inevitável, mas que poderia criar os anticorpos necessários para travar o comunismo na Europa.
No mundo da contingência
Em 2011, questionado pelo New York Times sobre qual era a sua abordagem à Política Externa, respondia: «Tento compreender, sem pessimismo ou otimismo, o mundo em que me encontro». A resposta choca com um tempo em que muitos querem mudar o mundo, mas poucos desejam compreendê-lo. E numa realidade que é mais de desordem que de ordem, confirmando a guerra como perigo sempre à espreita, a narrativa dominante é marcada pelo idealismo e progressismo liberais, que veem na manutenção do status quo e na ideia de ‘interesse nacional’ conceitos malditos.
Mas voltemos a 1943. Nesse período decisivo encontramos a conversão a um realismo que fundamentaria as escolhas, algumas cinzentas, feitas décadas mais tarde. A fé de Kissinger não resistiu ao embate com a História, à experiência na frente de batalha ou à libertação de Ahlem. De lá, escreveria aos seus pais: «Para mim não existe apenas o certo e o errado, mas muitas sombras pelo meio… as verdadeiras tragédias na vida não estão nas escolhas entre certo e errado. Só as pessoas mais cruéis escolhem aquilo que sabem ser errado. A verdadeira tragédia chega […] num dilema de avaliar o que é certo… Os verdadeiros dilemas são dificuldades da alma, provocam agonias, que no mundo a preto e branco não conseguimos nem começar a perceber».
Em 2003, no elogio fúnebre ao homem que mais o marcou (e que cortaria relações consigo depois de entrar na política) diria: «Os valores de Kramer eram absolutos. Como os profetas antigos, ele não fazia concessões à fragilidade humana ou à evolução histórica; ele tratava as soluções intermédias como uma derrogação dos princípios». Mas Kissinger, protagonista no mundo da grande política, abandonara o domínio dos princípios e valores absolutos. No «domínio do contingente», como ele descreveu, a escolha era a arte do possível, apresentando-se muitas vezes como encruzilhada entre dois males.
A legitimidade, para Kissinger, residia no equilíbrio, i.e., numa ordem internacional tacitamente aceite pelas grandes potências. E o melhor garante da paz não era a evangelização democrática, por mais nobre que fosse, mas a ordem. Não surpreende, por isso, a crítica (ódio, por vezes) com que foi tratado à esquerda, mas também por alguma direita. Reagan, diz-se, sempre desconfiou dele.
Em A Ordem Mundial, Kissinger expõe um dos grandes desafios num mundo que, tendo visto ruir os postulados otimistas do pós-Guerra Fria, busca a ordem mas vê-se condenado ao caos: «São tão diversas as interpretações de conceitos como democracia, direitos humanos e direito internacional, que é frequente as partes beligerantes fazerem deles os seus gritos de guerra».
Após a anexação da Crimeia, Kissinger (que privou com Vladimir Putin e sublinhou a necessidade de encontrar uma solução para o atual conflito que «acomodasse a dignidade da Rússia em termos históricos») defendeu que a Ucrânia deveria permanecer um país neutro. Mais tarde, reveria a sua posição. Também sobre o Iraque a sua posição foi ambígua, mas denunciou o ceticismo face ao otimismo moral a que as convicções, por vezes, nos condenam. Num artigo de 2013, Robert D. Kaplan recorda uma conversa que tivera com Kissinger no verão de 2002, em que este lhe dissera estar preocupado com a falta de pensamento crítico e planeamento perante a eminente ocupação de um país do Médio Oriente onde «a política normal não é praticada há décadas e, por isso mesmo, as lutas pelo poder teriam que ser muito violentas».
Num ensaio em 2018 na revista Atlantic, antevia o fim da criatividade, e com ela do iluminismo que marcara a modernidade: «Inundados através das redes sociais com as opiniões das multidões, os utilizadores são afastados da introspeção; na verdade, muitos tecnófilos usam a internet para evitar a solidão que temem. Todas estas pressões enfraquecem a fortaleza necessária para desenvolver e sustentar convicções que só podem ser implementadas quando se atravessa uma estrada solitária, que é a essência da criatividade». Kissinger não tinha os atributos dos grandes líderes, bons ou maus. Mas o que lhe faltava em paixão e convicção, sobrava-lhe em lucidez.
O pouco que foi vital
A revista Rolling Stone anunciava assim a sua morte: «Henry Kissinger, criminoso de guerra amado pela classe dirigente americana, morre finalmente». Mas houve uma América que o admirou, o compreendeu e até se riu com ele.
Numa sondagem de 1972, Kissinger, que devia pouco à beleza física, foi o preferido pelas coelhinhas da Playboy para um encontro. Questionado sobre o resultado, responderia com uma crueza que choca as sensibilidades contemporâneas: «O poder é o maior dos afrodisíacos». Na verdade, o poder e a diplomacia, sempre realista e tantas vezes secreta, de Kissinger talvez não sobrevivessem a estes tempos de frenesim e suspeições permanentes. Como o seu humor não sobreviveria ao puritanismo reinante.
Kissinger deixou um mundo que também transformou mas que, ironicamente, é em muitos aspetos semelhante ao que o viu nascer. Olhando para as relações entre grandes potências, as tensões no Médio Oriente ou para a Rússia, os problemas que Kissinger enfrentou continuam a desafiar-nos, agora com outros protagonistas.
Reconhecendo as falhas e limites da condição humana, nunca se guiou por outro ideal que não a realização, na medida possível, do interesse nacional. Para muitos terá sido pouco. Mas é possível que, em momentos críticos, esse pouco tenha sido a única via possível. Em 2022, perguntado sobre como gostaria de ser lembrado, instou os grandes líderes a focarem-se no caminho que os seus países precisam seguir, e acrescentou: «O que eu sinto que a América mais necessita é ter fé num futuro nacional».
Kissinger, o “controverso”, manteve-se lúcido até ao fim, num caminho cheio de sombras, mas com alguma luz.