“Portugal parece ser o país ideal para uma criança crescer”

Carla e João Pedro, casal português, e Inês e Rafael, casal brasileiro, foram pais este ano, explicando que adiaram a paternidade para o pós-pandemia. Maria João Valente Rosa, professora universitária e demógrafa, reflete acerca dos ‘altos e baixos’ da natalidade.

Carla e João Pedro Dias foram pais do pequeno Miguel em abril e não poderiam estar mais felizes. No entanto, pais de primeira viagem aos 43 anos, admitem que já tinham adiado a maternidade e paternidade por condições financeiras antes da pandemia e ainda mais o fizeram desde o surgimento da covid-19. “A pandemia veio alterar a vida de todos nós, mas acho que quem pensava em ter filhos ficou com muitas dúvidas e acabou por deixar esse plano para depois. Mesmo assim, o panorama ainda não é perfeito e penso que nunca será”, explica Carla, sendo que João concorda com a companheira.

“A verdade é que ter um filho constitui uma responsabilidade enorme e fazê-lo sem as condições ideais não é a melhor decisão para alguns casais. Antigamente, muitas pessoas decidiam ter filhos sem pensar muito como seria o futuro dos miúdos . Hoje em dia, as coisas não funcionam assim”, diz, indo ao encontro de Maria João Valente Rosa, professora assistente no Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa que em 2019, em entrevista ao i, explicou que “a criança passou a ser entendida como um projeto, em que se pensa muito para o concretizar, desejando-se que nasça e cresça em perfeitas condições”. Tal exigência de qualidade explica em muito a razão de as pessoas adiarem o projeto de parentalidade e de terem poucos filhos em média.

“Segundo os dados do inquérito à fecundidade de 2019, 8,4% das mulheres e 11% dos homens declararam não ter filhos e não esperarem ter. Assim, a esmagadora maioria das pessoas em idade fértil querem ter pelo menos um filho. A questão da fecundidade em Portugal não é de as pessoas terem virado as costas ao projeto de parentalidade: o problema está na transição para o segundo ou mais filhos. E aqui há um certo conflito entre quantidade e qualidade”, explica a doutorada em Sociologia, na especialidade de Demografia, e também autora e coautora de vários artigos e livros sobre a sociedade portuguesa contemporânea, designadamente sobre envelhecimento demográfico.

“Cada filho que se tem, atualmente, representa um enorme investimento, não só financeiro, como emocional e profissional. Quando, no inquérito, se perguntou a razão da opção de não querer ter o segundo filho, para quem ainda só tinha o primeiro, um argumento importante foi o de com apenas um filho ser mais fácil proporcionar oportunidades de qualidade de vida no futuro . Por outro lado, se a vontade de se ter um filho pode ser muita, depois de se ter surgem novas complicações. A inconciliação dos tempos ‘trabalho e família’ é um obstáculo à natalidade, numa sociedade que valoriza muito o tempo que se está no local de trabalho, como na nossa, barreira particularmente experienciada após o nascimento do primeiro filho. Também a desigual partilha de responsabilidades entre mãe e pai, em desfavor das mães, pode funcionar como mais uma travão à transição para o segundo filho. Com efeito, são grandes as dificuldades das mulheres em conciliarem o seu papel de mãe com a sua vida profissional, numa sociedade muito marcada por uma desigualdade de papéis entre homens e mulheres, dentro do espaço doméstico. Quem é que fica em casa quando a criança está doente ou de quem é a responsabilidade pelo acompanhamento escolar dos filhos, etc? Assim, o enorme valor atribuído à criança, associado às dificuldades inerentes às responsabilidades parentais, leva a que muitos adiem ter o primeiro filho ou desistam de ter mais que um filho”.

O casal de Lisboa vai ao encontro dos dados que nos indicam que a pandemia está associada a uma significativa diminuição nas taxas de natalidade em países de alto rendimento, com quedas particularmente acentuadas no sul da Europa, como Itália (-9,1%), Espanha (-8,4%) e Portugal (-6,6%), segundo um estudo conduzido pela Universidade Bocconi de Itália e publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

Os dados abrangem o período de janeiro de 2016 a março de 2021 e incluem informações de 22 países de elevado rendimento. O estudo utilizou modelos numéricos para analisar as tendências de longo prazo e a sazonalidade, revelando que a pandemia teve um impacto mais expressivo do que o esperado nas taxas de natalidade bruta em sete dos países considerados. Os declínios nas taxas de natalidade bruta foram de 8,5% na Hungria, 9,1% em Itália, 8,4% em Espanha e 6,6% em Portugal. Além disso, Bélgica, Áustria e Singapura também experienciaram quedas significativas nas taxas de natalidade bruta, de acordo com a análise.

Os dados disponíveis oferecem uma visão inicial centrada na primeira vaga da pandemia. Em alguns países, como França e Espanha, observou-se uma recuperação nas taxas de natalidade em março de 2021, em comparação com as de junho de 2020, marcando o declínio da primeira onda. Os resultados têm implicações abrangentes na dinâmica populacional e podem influenciar políticas relacionadas com os cuidados infantis, habitação e mercado de trabalho. A compreensão mais aprofundada do impacto da pandemia nas decisões de reprodução da população destaca a necessidade de adaptações nas políticas públicas para enfrentar as mudanças demográficas e sociais decorrentes desse período desafiador.

Pelo segundo ano consecutivo, Portugal testemunhou um aumento no número de nascimentos nos primeiros seis meses do ano, conforme relatado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA). Entre janeiro e junho, 41.892 recém-nascidos realizaram o ‘teste do pezinho’ como parte do Programa de Rastreio Neonatal (PNRN), coordenado pela Unidade de Rastreio Neonatal, Metabolismo e Genética do Departamento de Genética Humana do INSA. Isso representa um aumento de 6% em relação ao primeiro semestre de 2022, ano em que a natalidade já havia crescido 5,1% após uma queda acentuada em 2021.

O aumento pode ser atribuído, em parte, ao nascimento de filhos de mães estrangeiras, que representaram 16.7% do total de nascimentos em Portugal em 2022. Além disso, o impacto pós-pandemia pode estar a influenciar a decisão de muitas mães que adiaram o parto devido à incerteza gerada pelos confinamentos relacionados com a covid-19. Mulheres, especialmente na faixa etária entre os 30 e 35 anos, parecem estar a retomar os seus planos de maternidade.

Os dados do PNRN indicam que a maioria dos recém-nascidos está nas principais cidades do país, Lisboa (12.613) e Porto (7.550), enquanto os distritos do interior, como Portalegre (253), Bragança (305) e Guarda (308), registam os números mais baixos. Janeiro foi o mês com o maior número de nascimentos. Além disso, a população em Portugal está a seguir a tendência da União Europeia (UE). Após dois anos de declínio, a população europeia aumentou em 2022. Segundo a Eurostat, Portugal ganhou cerca de 156 mil habitantes no mesmo ano, impulsionado principalmente pela imigração.

Quem concorda com Carla e João, e espelha estes dados, é o casal Silva Gomes, que veio do Brasil há cinco anos e foi pai também em 2023. “Viemos pelas condições económicas e pela segurança e decidimos ficar. Portugal parece ser o país ideal para uma criança crescer. As pessoas podem queixar-se da falta de apoios e eu percebo isso, mas não imaginam a realidade que vivemos no nosso país”, afirma Inês, de 37 anos, enquanto Rafael, de 40, anui e sublinha: “No Brasil, fala-se da maior escolarização, do uso de contracetivo, da maternidade tardia… Enfim, daquilo que também se fala aqui na Europa, para justificar a baixa natalidade, mas a verdade é que as pessoas têm medo de ter filhos num país que tem cada vez mais perigos”.

“A imigração pode representar um importante contributo para a natalidade, caso esse movimento implique especialmente as idades centrais, também elas as mais férteis, tal como acontece quando as motivações são de tipo laboral. Em contrapartida, a emigração de jovens adultos faz com que estes acabem por ter os seus filhos nos países para onde emigraram, e não em Portugal, contribuindo para a baixa de nascimentos. Sabemos que o número de nascimentos em 2022 superou em cerca de quatro mil o número de observado em 2021. Analisando com mais detalhe percebemos que a esmagadora maioria desse acréscimo, ou seja mais do que três em cada quatro nascidos, a mãe tem nacionalidade estrangeira. Quer dizer que sem as mulheres de nacionalidade estrangeira em Portugal, o aumento do número de nascimentos em 2022 teria sido muito menos expressivo. Assim, numa situação de baixos níveis de fecundidade e em que é baixo o número de mulheres no período fértil residentes em Portugal, devido a terem nascido já em períodos de baixa natalidade, é sempre uma boa notícia a chegada de imigrantes nas idades férteis, tal como aqui aconteceu nos anos recentes ”, conclui a autora de obras como Um Tempo Sem Idades e O Envelhecimento da Sociedade Portuguesa.