Um mundo em frangalhos

De onde virá a esperança para este mundo em frangalhos?

É indiscutível que quem mais ganhou com o reacender do conflito israelo-palestino foi a Rússia. O 7 de outubro desviou as atenções mediáticas da guerra da Ucrânia, que deixou de ser o foco principal das notícias; transformou os soldados russos em meninos de coro quando comparados com as atrocidades cometidas pelos guerrilheiros do Hamas; obrigou o Ocidente, especialmente os EUA, a dividir esforços financeiros e militares entre a Ucrânia e Israel; e finalmente levou a uma alta do preço do petróleo, a principal exportação russa.

Qualquer uma destas situações, considerada isoladamente, seria uma grande vitória para a Rússia. Neste contexto, a aliança com o mundo islâmico que Moscovo tem vindo a ensaiar há algum tempo – considere-se, por exemplo, o apoio dado a Assad na guerra-civil síria; a retirada dos peace-keepers russos que garantiam Nagorno Karabakh, e a recente realização do Russia-Islamic World Forum na cidade russa de Kazan – está a começar a produzir os seus frutos.

A Rússia quer apresentar-se ao mundo como nação indispensável para a paz global e demonstrar ao Ocidente que, sem a sua cooperação, a ordem internacional desmorona-se.

Na Europa, pondera-se até onde levar a ostracização da Rússia de forma a dissuadi-la de avançar pela Europa Central. Mas as sanções e restrições impostas a Moscovo são de tal ordem que parecem ter tornado impossível qualquer tipo de reconciliação, mesmo que a Rússia ofereça garantias de não pretender progredir no teatro europeu. Efetivamente, quase nenhuma nação europeia tem confiança no diálogo com a Rússia e não estão agendadas quaisquer conversações diplomáticas. O Reino Unido agarra-se à retórica belicista de uma derrota estratégica russa, propagandeada pelo cenário cada vez mais utópico de que a vitória ucraniana se encontra ao virar da esquina. E persiste na narrativa de um iminente volte-face no rumo da guerra, embora grande parte dos analistas internacionais admita já o fracasso da contraofensiva ucraniana. A União Europeia, propulsionada pelos receios polacos, redobra as sanções à Rússia, ignorando os casos, nomeadamente do Japão na II Guerra Mundial, em que foram precisamente as sanções que precipitaram a entrada deste na guerra.

Em contrapartida, nos EUA, aumentam de tom e em número as vozes que se opõem à continuação do apoio à Ucrânia, não só no partido republicano, mas também no partido democrata, especialmente da parte de R.F.K. Jr. Os EUA, com a aproximação de umas eleições presidenciais cujo resultado, qualquer que seja, não satisfará nenhuma das partes, são crescentemente vistos como uma «superpotência disfuncional», nas palavras de Robert Gates, antigo ministro da Defesa de Bush e de Obama, no mais recente número da Foreign Affairs: «Os Estados Unidos encontram-se numa posição excepcionalmente traiçoeira: enfrentam adversários agressivos com propensão para erros de cálculo, mas são incapazes de reunir a unidade e a força necessárias para os dissuadir».

Entretanto, no Médio Oriente, os países islâmicos ponderam até quando deixar avançar a atual ofensiva israelita em Gaza antes de se coligarem numa aliança suni-xiita contra Israel, pressionados por fortes manifestações internas. Por seu lado, Israel tem como objetivo levar a ofensiva o mais longe possível, para servir de dissuasão a novas incursões do Hamas ou de outros grupos islâmicos radicais, como o Hezbollah. Poderá a indignação israelita, face às atrocidades de 7 de outubro, esmorecer antes de a indignação árabe pelos ataques a Gaza levar à conflagração total na região? Note-se que a sobrevivência de Israel não está garantida caso se forme uma coligação islâmica, por mais apoio que este receba do Ocidente. Esta é a principal lição que os países islâmicos estão a retirar da Guerra da Ucrânia: é possível persistir numa guerra mesmo contra os EUA e a Europa, desde que se conte com o apoio de Moscovo. A perda de respeito pelos EUA revela-se nos ataques de proxys iranianos a bases norte-americanas na Síria, onde se registaram 40 ataques desde 7 de outubro que provocaram 45 feridos norte-americanos, e levaram os EUA a retaliar por três vezes com raids aéreos a bases da Guarda Revolucionária iraniana na Síria, a 27 de outubro, a 8 e a 12 de novembro. Estes ataques levaram o Irão a avisar que está pronto para um conflito mais vasto com os EUA, embora alegadamente não o queira. Os EUA anunciaram posteriormente que tinham posicionado um submarino com capacidade nuclear na região. A Turquia, por seu lado, tenta aproveitar a sua situação singular de único país islâmico pertencente à NATO para aumentar a sua influência regional. No entanto, caso se veja obrigada a optar, poucos observadores duvidam de que se juntará ao mundo islâmico em detrimento dos aliados ocidentais da Aliança Atlântica. Por quanto tempo conseguirá evitar tomar posição, ninguém sabe.

Na Ásia, a China consolida a aproximação com a Rússia e pondera a melhor altura para avançar com a reunificação de Taiwan, que já declarou pretender consumar até 2049. Entretanto, a Coreia do Norte tem servido de entreposto para a exportação de material militar para Moscovo, com já mais de um milhão de obuses entregues desde o início de agosto deste ano. Quem duvida da verdadeira proveniência destes obuses, cuja capacidade de produção, nem a Europa, nem os EUA, juntos, conseguem acompanhar?

Por sua vez, na América Central registam-se sinais de desestabilização na Nicarágua, Honduras, El Salvador e até na Costa Rica, considerada até há pouco como o modelo democrático da região.

No continente africano tem sido referenciada atuação do Grupo Wagner, durante e pós Prigojin, na República Centro-africana, Sudão, Líbia e Mali. Também em Moçambique se renovaram recentemente os ataques em Cabo Delgado, adiando indefinidamente o projeto de gás natural essencial para esse país e para a Europa, num conflito já fez um milhão de deslocados (ACNUR), e cerca de 4000 mortes (ACLED).

A este perigo global acresce um novo fator. A visualização da guerra encontra-se hoje ao alcance de um mero telemóvel. Isto leva a que todos sejam incitados a tomar partido nas guerras, especialmente as do Médio Oriente, provocando debates incendiários, ataques a cartazes com nomes de reféns, ou micro agressões na via pública. Os cidadãos de qualquer país do mundo, desde a África do Sul até à Noruega, são levados a tomar partido num contexto de divisão generalizada e de conflitualidade latente, passível de se alastrar a todo o mundo.

De onde virá a esperança para este mundo em frangalhos?

Especialista de Relações Internacionais