Famílias numerosas. “Os anos passam e as coisas continuam iguais”

“Por isso é que muitas pessoas não querem ter filhos, porque, neste momento, essa decisão é de empobrecimento”, afirma Ana Cid Gonçalves, secretária-geral da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN).

Falámos em 2021 e tenho a dizer que os anos passam e as coisas continuam iguais. Estamos a passar por um período especialmente difícil para as famílias na medida em que houve uma escalada da inflação e um disparar de juros. Obviamente, as famílias com filhos, não só as numerosas, foram as mais atingidas. Constatámos que não houve medidas adotadas especificamente para estas famílias. Por exemplo, no IRS, toda a variação de rendimento disponível era exatamente a mesma para o mesmo rendimento independentemente daquele rendimento alimentar e vestir uma, duas, três ou quatro pessoas”, começa por dizer Ana Cid Gonçalves, secretária-geral da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN), que conta com 12298 famílias associadas e quase 24 mil sócios ativos.

“E nos apoios ao arrendamento era completamente indiferente se era para uma ou mais pessoas, não variava rigorosamente nada, quando é óbvio que uma família maior precisa de uma habitação maior e, naturalmente, tem mais encargos. Estes dois exemplos são elucidativos. Nenhuma medida tem em conta a existência de filhos no agregado familiar. Por isso é que muitas pessoas não querem ter filhos: porque, neste momento, essa decisão é de empobrecimento. A pessoa sabe que as medidas existentes não são equitativas nem justas para suprir os encargos muito elevados. E depois há as questões do tempo: quando há filhos precisamos de recursos económicos, mas também de tempo. Continuamos a ter problemas a esse nível. Saem bastante tarde e não há creches suficientes”, sublinha a dirigente. 

“A título de exemplo, o programa Creche Feliz foi uma iniciativa boa, mas tem várias deficiências. Além de não haver creches suficientes, os condicionalismos que foram incluídos tornam muito difícil encontrar vagas que sirvam às famílias efetivamente. Se houver vagas no setor social, as famílias não podem inscrever as crianças no setor privado. Mas a do setor social pode ser muito longe! Além disso, o valor atribuído às creches por criança é o mesmo independentemente se as creches se situam nas áreas metropolitanas ou no Interior do país quando, obviamente, os custos de exploração são totalmente distintos”, explica, sendo que o programa Creche Feliz enfrenta problemas de implementação, com vagas anunciadas como disponíveis na aplicação do programa, mas que, na realidade, não existem. Isso impede que os pais recorram à oferta privada, deixando-os sem alternativas e incapazes de beneficiar da gratuitidade oferecida pelo programa, como o i noticiou esta segunda-feira.

O programa Creche Feliz foi criado para abordar a escassez de vagas nas creches, oferecendo gratuidade tanto no setor social quanto no privado, com a condição de que as vagas no setor social se esgotem primeiro. No entanto, as famílias estão a enfrentar dificuldades devido a informações incorretas sobre a disponibilidade de vagas na aplicação do programa. Nas cidades de Aveiro e Lisboa, há relatos de vagas que aparecem como disponíveis na aplicação, mas que, na realidade, não existem. Isso cria uma situação em que as famílias não conseguem inscrever os seus filhos na rede privada, pois as vagas na rede social ainda aparecem como disponíveis. Isso resulta em famílias a pagar integralmente as mensalidades, mesmo que a gratuidade do programa deva ser a opção.

A Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP) denunciou a situação ao Instituto da Segurança Social (ISS), mas até ao momento não houve resposta ou solução. O Instituto de Segurança Social afirma que a informação sobre as vagas na aplicação Creche Feliz está atualizada, mas sugere que os pais consultem frequentemente a aplicação, pois a disponibilidade de vagas é um processo dinâmico.

A mãe de cinco filhos e avó, há dois anos, em entrevista ao i, tinha frisado que “as famílias numerosas são prejudicadas em muitos âmbitos porque não se tem em conta o consumo per capita”. “Temos tentado alterar esta situação, nomeadamente, ao nível da tarifa da agua, IMI familiar, etc. Queremos que sejam tratados com equidade e justiça. Têm dificuldade em todos os parâmetros. Ao nível do IRS, há uma necessidade de alterar a situação atual. O que acontece é que têm um conjunto de despesas elevado e é preciso ter isso em conta. O nível de rendimentos que alimenta e veste uma pessoa não é o mesmo que alimenta e veste cinco ou mais pessoas. O Estado não tem prestado atenção às famílias numerosas. Um copo de água custa mais na casa de uma família numerosa do que noutra qualquer. Na questão do IRS: o imposto é progressivo. Ou seja, quanto mais rendimentos uma pessoa tem, mais pode contribuir. O que acontece é que depende de quantas pessoas sustenta. A correção que é feita pela existência de filhos não tem em conta essa progressividade”, alertou Ana Cid Gonçalves. 

“Há um casal de professores no primeiro escalão da carreira e passam a ter de rendimento ilíquido mais cem euros. E, portanto, decidem ter um filho. No ano seguinte, com mais um filho, ninguém pode dizer que têm maior capacidade financeira porque o filho até absorve mais do que esses 100 euros. Mas a verdade é que vão pagar mais impostos. Na eletricidade é a mesma coisa: há necessidade de mais potência, paga-se mais por kilowatt. IVA eletricidade”, continua. “Temos muitas vertentes de ação: uma mais política, mas não partidária, no sentido de mudar as políticas aos níveis local e regional; avaliamos e premiamos os municípios com maior conjunto de boas práticas adotados e trabalhamos com todos os ministérios. Questões do apoio jurídico, temos uma comunidade onde partilham ideias e experiências. Temos as famílias em rede que se entreajudam e fazem reuniões periódicas em que abordam temas sobre gestão do orçamento familiar, educação, etc.”, observou. “Temos o SOS Famílias, que estão em dificuldades, são elas que se entreajudam, só subsistimos com as quotas dos associados porque não temos quaisquer apoios públicos. Também temos parcerias com as empresas. Nascemos em 1999 e temos muitas famílias que são associadas desde esse ano. Há um empobrecimento voluntário muito agudo”.

OE 2023: problemático na ótica da APFN 

No ano passado, a APFN expressou a sua discordância em relação às medidas apresentadas no Orçamento do Estado de 2023. A APFN considera que essas medidas são inadequadas para compensar o aumento de encargos que afeta desproporcionalmente as famílias com três ou mais filhos, tornando-as mais vulneráveis à pobreza, conforme apontado por dados da Rede Europeia Anti Pobreza. 

A APFN destacou a necessidade de medidas de justiça social, propondo as seguintes prioridades: diminuição do IVA dos bens e serviços essenciais; aumento da dedução por filho no IRS, pelo menos equivalente à inflação; alteração do método de cálculo para uma dedução antes da aplicação da taxa; atribuição a cada dependente de uma dedução equivalente à das despesas gerais e familiares.

A associação criticou o facto de o Orçamento do Estado não incluir medidas universais para famílias com filhos, salientando que as medidas propostas são limitadas ou não levam em consideração a situação específica dessas famílias.

A APFN analisou algumas das medidas previstas no orçamento e destacou preocupações específicas. Por exemplo, o IVA na eletricidade, pois considera-se que a proposta de redução do IVA na eletricidade não aborda adequadamente as necessidades das famílias numerosas; o Mínimo de Existência –a APFN destaca a necessidade de estabelecer o mínimo de existência com um valor per capita e sujeito a atualização automática; a dedução no IRS para segundos filhos ou seguintes – o aumento para 900 euros para filhos até 6 anos é considerado positivo, mas a associação questiona porque é que os valores de dedução variam com a idade; o abono de família – a APFN defende que o abono de família deve ser universal, com um mesmo valor atribuído a cada criança, independentemente da idade; o IMT para casas de primeira habitação – critica a definição cega do valor em relação ao número de pessoas que residirão na habitação; a taxa marginal do segundo escalão – questiona a eficácia real da redução da carga fiscal para as famílias com filhos, considerando a falta de consideração pela progressividade do imposto em relação à presença de filhos.

A APFN destacou a necessidade de reconhecer o valor social de cada filho e sugere que este princípio deve ser refletido nas políticas públicas, daí revelar a sua disponibilidade para colaborar com o Governo e com o Parlamento na procura de soluções que não coloquem as famílias numerosas em maior risco de pobreza.