Esperamos que os hospitais sejam locais seguros. Se temos de recorrer aos seus serviços, a expectativa é que nos tratem com cuidado, profissionalismo e empatia. Que possamos largar o peso da preocupação e entregar-nos a especialistas que responderão às nossas necessidades. Infelizmente, nem sempre é isso que acontece. A violência obstétrica – violência contra as mulheres no contexto da assistência à gravidez, parto e pós-parto –, é uma realidade e o tema está cada vez mais na ordem do dia. As páginas de Facebook e Instagram dedicadas ao assunto têm-se multiplicado com o passar dos anos e são cada vez mais as mulheres que querem contar a sua história, mesmo que muitas decidam fazê-lo no anonimato por medo ou trauma.
Segundo um estudo online realizado pelo Instituto Superior de Saúde Pública da Universidade do Porto, entre março de 2020 e outubro de 2021, publicado pela revista científica The Lancet Regional Health – Europe no final de 2021, no qual participaram mais de 21 mil mulheres que foram mães durante essa altura – cerca de 18 mil de nacionalidade portuguesa –, Portugal continua a ter taxas de procedimentos considerados como violência obstétrica superiores às de outros países. De entre as práticas médicas, destaca-se o recurso a técnicas não aconselhadas como a episiotomia, uma incisão cirúrgica no períneo (região muscular entre a vagina e o ânus), realizada na segunda fase do trabalho de parto, com o objetivo de alargar o orifício vaginal, de forma a facilitar a expulsão do bebé, e a manobra de Kristeller que, de acordo com a Ordem dos Médicos (OM), “pode descrever-se como a aplicação de pressão com as mãos sobre o fundo uterino, sincronizada com as contrações uterinas, segundo um ângulo de 30 a 40 graus em direção à pelve, sendo aplicada manobra equivalente em situações de cesariana”.
Recorde-se que em países como a Argentina e a Venezuela, esta prática já é considerada crime desde os anos 2000. No que toca ao cenário europeu, países como a Espanha, França e Itália continuam a debater a inclusão deste tipo de violência na legislação. Já em Portugal, em 2021, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresentou um projeto de lei que visa “criminalizar a prática de violência obstétrica” e “reforçar a proteção das mulheres no contexto da gravidez e do parto”. E até lá? Quantas mulheres viverão um pesadelo na sala de parto?
Às portas da Morte
Ainda hoje, Margarida Pereira tem pesadelos à noite. O seu filho já tem 22 anos, no entanto, o terror que viveu no parto continua a assombrá-la. Algo que nunca imaginou que aconteceria durante a gravidez. “A minha gravidez foi tranquila e bem acompanhada”, afirma. Os problemas começaram apenas na altura do parto. “Fui internada para indução do parto e estive com outra rapariga na mesma enfermaria. As coisas começaram logo mal”, lembra. Margarida recorda que a médica que iniciou o trabalho chamou-lhe “escanzelada” e à sua colega, “obesa”. “‘Uma está magra demais e outra gorda demais’, disse para o ar. Psicologicamente começou mal. Na altura do parto, como o meu médico estava de férias – só me disse uma semana antes do parto –, a enfermeira responsável teve de chamar dois médicos, pois o meu filho mudou de posição e teve de ser retirado a fórceps (um instrumento semelhante a uma tenaz que é utilizado na medicina obstetrícia para auxiliar a retirada de um feto)”, continua. Passadas algumas horas, pediram-lhe para urinar e Margarida não conseguiu. “De sexta a domingo comecei a perder forças, não conseguia urinar e a enfermeira de serviço só dizia para eu não ser ‘mariquinhas’”, revela.
No domingo à tarde, quando os seus pais a foram visitar, já sem forças nenhumas, escreveu num papel à sua mãe que “estava a partir”. “Só nesse momento é que ouviram a minha mãe. O médico foi-me ver… Fui de urgência para a sala de operações porque me tinham perfurado a uretra”, revela. No dia seguinte, os seus níveis de hemoglobina desceram a 4,0. “Levei 3 transfusões sanguíneas e não estava bem. Na terça-feira de manhã, decidiram levar-me para os cuidados intensivos e tiraram-me o meu filho que ficou numa cama a um canto de uma sala sozinho à espera que alguém o fosse buscar”, lamentou. Esteve nos cuidados intensivos 5 dias… Sobre o primeiro dia, não se lembra de absolutamente nada. “O enfermeiro dizia que não sabia como é que eu estava viva. Lá fora, a minha família dizia que ia levar o caso à televisão e, por isso, sempre que eu pedia alguma coisa, alguns médicos e enfermeiros gozavam”, conta. Margarida pedia a arrastadeira, o banho seco e, sublinha, era tudo feito com “mau humor”. “Ouvi o médico e uma enfermeira dizerem: ‘Se ela piorar que a mandem para o hospital da sua residência para morrer’”, afirma com a voz trémula.
“Foram dias de muito sofrimento psicológico. Quando saí dos cuidados intensivos, fui para um quarto sozinha devido à pressão da minha família e a médica que me vinha ver, estava sempre a dizer piadas. Para mim, a mais grave foi que eu estava à vontade para fazer sexo com o meu marido”, lamenta. Na altura, como estava frágil e dependente dos médicos e enfermeiros, nunca conseguiu fazer queixa da falta de sensibilidade e gozo de alguns profissionais. “Quando tive alta, estive algaliada por um mês e foi a enfermeira chefe que me viu. Foi a única a pedir desculpa por tudo e lamentar por estar de férias na altura”, acrescenta. “Ainda hoje tenho sonhos com o que aconteceu. Nunca pedi ajuda ou tratamento pois perdi um mês sem o meu filho e queria recuperar o tempo perdido. Fiquei com medo de engravidar outra vez e que todo esse pesadelo acontecesse novamente. Acabei por engravidar oito anos depois, mas infelizmente perdi os gémeos”, revela ainda Margarida. “Dar à luz não devia ser um pesadelo”, sublinha.
Sentimento de humilhação e impotência
“Sofri de violência obstétrica na minha gravidez, há cinco anos atrás”, conta por sua vez Clara Silva, de 29 anos. O parto, apesar de todo o nervosismo associado, correu bastante bem e a jovem sentiu que de facto teve sorte com a equipa que a seguiu. “No entanto, demorei cerca de 2 horas para que me pudessem suturar, após o rasgão sofrido pelo parto normal. Acabei por me sentir, apesar disso, bastante bem no recobro e consegui logo caminhar, pegar na minha filha ao colo e sentir que, apesar do parto e da sutura, era uma mãe ‘funcional’ e a recuperar muito bem”, continua Clara. Passados os dias necessários, chegou finalmente a hora de ser vista por uma médica que lhe iria dar alta. “A médica entrou no quarto juntamente com vários estagiários. Colocou as suas luvas, pediu-me para me colocar na posição certa para ser observada e, ao fazê-lo, foi bastante abrupta e eu senti os pontos a rebentar e gritei de dor”, lembra. Em resposta, ouviu a médica rir-se, dizendo que não entendia como após um parto normal e tendo ela várias tatuagens no corpo, era capaz de gritar e chorar por uma simples observação. “Senti-me humilhada e as dores eram para lá de insuportáveis”, lamenta. Foi-lhe dada a alta, após todos os profissionais presentes terem saído do quarto onde a médica a deixou a “contorcer-se de dores”.
Desde esse exame, esteve um mês com dores que a incapacitavam no caminhar, no sentar e deitar e, por conseguinte, no cuidar da sua filha. “Como as dores eram insuportáveis, quando saí do hospital, deixei a minha bebé no carro com o pai e, sem voltar a casa, regressei para as urgências do hospital. Lá implorei para que me observassem com delicadeza porque as dores deixaram-me assustada”, revela a jovem. “Senti nas urgências que tentaram encobrir o que a médica tinha feito, falando baixo uns com os outros e não me explicando diretamente o que se estava a passar. Deram-me gelo e medicaram-me para eu conseguir suportar as dores. No final, uma das enfermeiras veio em tom de lamento dizer que a médica que me deu alta me rebentou uma grande parte dos pontos”, explica. Depois disso, a recuperação continuou a ser dolorosa. “Acabei por não apresentar queixa porque passou o tempo em que o poderia fazer e, na verdade, todo o tempo foi precioso para o cuidado da minha filha, de mim própria e da tentativa de esquecer o trauma que me causou essa grande falha por parte da médica que me deu a alta”, explica Clara.
Medo de ter mais filhos
Filipa Marujo tem 32 anos e foi mãe em 2018. “O meu trabalho de parto durou 19 horas. Parto induzido manualmente uma vez que o comprimido que me tinham dado não estava surtir efeito. Tive a bolsa rasgada com a mão da médica sem que eu tivesse muita noção do que ela estava a fazer perante a minha ingenuidade de mãe de primeira viagem”, começa por contar. Quando a passaram do internamento para a sala de expulsões só tinha cinco dedos de dilatação, o que fez com que o parto ainda demorasse bastante tempo. “Sempre que gritei com dores havia alguém a desvalorizar e a fazer comentários do género: ‘Esta é mesmo a sua primeira vez’”, acusa. “Foi-me feita a manobra de Kristeller sem o mínimo consentimento ou informação. Foi super doloroso e não sabia por que tinha uma enfermeira a fazer força na minha barriga para ajudar o bebé a descer”, lamenta a jovem, acrescentando que o parto foi tão traumático que até hoje, ainda não conseguiu rever o vídeo. “Também penso seriamente se conseguirei voltar a ser mãe”, admite. Após o nascimento, conta, apanhou uma greve dos enfermeiros e, por isso, demorou horas a ser encaminhada com o bebé para um quarto. “Não tive qualquer tipo de apoio durante 48 horas. Não me conseguia levantar sozinha para ir à casa de banho por causa dos pontos na vagina e fazia xixi na cama, porque não tinha ajuda para me levantar”, denuncia ainda. “Claro que depois ralhavam-me porque a cama estava suja… Foi um terror e um estado de vulnerabilidade, desamparo e desconsolo que não desejo voltar a sentir nunca”.