Amarelo. Refere a enciclopédia: «Cor-pigmento primária e cor-luz secundária, resultado da sobreposição das cores verde e vermelho. É a cor entre verde e laranja no espectro da luz visível». E acrescenta: «É evocado pela luz com um comprimento de onda dominante de aproximadamente 570-590 nm. É uma cor primária em sistemas de cores subtractivas, usado na pintura ou impressão em cores». E, em seguida, vai ainda mais longe: «É considerado o mais expansivo entre os matizes, assim como o que mais atrai os olhos. A exploração do seu uso tem uma grande importância na obra de Vincent van Gogh». Ora era precisamente aqui onde eu queria chegar, a uma personagem extraordinária, certamente uma das mais fascinantes de toda a Humanidade, que levantou questões infinitas e impossíveis de resolver: Vincent Willem van Gogh, um pintor classificado como pós impressionista, que nasceu em Zundert, na Holanda, no dia 30 de março de 1853, e morreu em França, em Auvers-sur-Oise, a 29 de julho de 1890. Nunca ninguém como ele ficou ligado para sempre ao amarelo, ao ponto de os amarelos de Van Gogh serem objeto de estudo e, mais ainda, das teorias mais rebuscadas, embora também tenha havido períodos da sua vida tão confusos para o seu cérebro baralhado que chegou a ingerir tinta amarela convencido de que tal o poderia libertar das trevas da depressão que o levaram à morte. Numa fase em que esteve internado em Saint-Rémy, uma instituição para pessoas com problemas mentais, chegou a escrever ao irmão Théo, o maior responsável pela divulgação e venda das suas obras: «Acho que tenho comido uma série de porcarias, mas sinceramente não me lembro de nada». Questionado porThéo, o dr. Peyron, médico responsável por Vincent, responderia: «O seu irmão passou por uma tentativa de suicídio ingerindo um frasco de tinta amarela misturado com terebentina».
Anna Gruener, uma médica alemã, escreveu vários ensaios sobre esse fenómeno do amarelo na pintura de Van Gogh. Também ela não fugiu à possibilidade de o artista ser influenciado pela xanthopsia, tal como aconteceu com outro pintor famoso, Claude Monet. «No tempo dos romanos existia uma expressão que pode resumir-se a “ver tudo amarelo”. Essa expressão seria descrita por gente da ciência, como Lucretius, Varro e Cassius como um estigma mental, e o seu colega Galeno considerou ser provocado por hyposphagma, ou seja, excesso de sangue no humor líquido. Basicamente, a xanthopsia seria devida ao aumento da bílis ao ponto de afectar a córnea e, com isso, a visão generalizada». A vida de VanGogh foi trágica. Tão trágica e autodestrutiva que acabou por suicidar-se aos 37 anos. Pelo caminho teve tempo de cortar uma das orelhas, um episódio que faz parte da História Universal, e que muitos afirmaram que se deveu a uma paixão não correspondida. A verdade é que, quando questionado em relação ao seu ato tresloucado, Vincent se resumiu a uma resposta direta: «Era algo que tinha de ser feito». E vai daí e tratou de pintar o seu auto-retrato de orelha cortada. Pode não ser próprio de quem tem o juízo no seu perfeito lugar, mas ninguém pode acusá-lo de não ser coerente.
Um mundo todo amarelo
Num mundo todo amarelo, que espaço sobra para as outras cores? E, no entanto, apesar da sua fase furiosamente amarela, na qual até foi capaz de pintar-se como um homem amarelo, Vincent van Gogh foi um inimitável utilizador de cores. E uma personagem irrepetível ao ponto de ter sido estudado por mais de 150 psiquiatras e psicanalistas, a maior parte deles após a sua morte, está claro. Os diagnósticos multiplicaram-se até ao exagero: de desordem bipolar, esquizofrenia, neurose, desordem disfórica, excesso de exposição solar, porfíria aguda e intermitente, epilepsia temporária provocada pelo excesso de consumo de absinto, síndrome de Ménière, etc., etc. etc. Mas, mais confuso do que toda essa torrente de doenças com que catalogaram o pobre Vincent, ei-lo que, em 1889, durante o seu primeiro internamento em Saint-Rémy, apanhou pela frente um médico, o dr. Paul-Ferdinand Gachet – um teimoso homeopata –, que resolveu fazer experiências à conta do seu paciente e prescreveu-lhe um longo tratamento à base de dedaleira. Com o nome técnico de Digitalis Purpurea, a dedaleira é fornecedora de uma droga fortíssima, a digoxina, um fármaco que foi durante muitos anos utilizado nos tratamentos cardíacos. Ora, é opinião generalizada de muitos clínicos que fizeram estudos alargados sobre os problemas sofridos por Van Gogh que a digoxina terá sido a principal responsável por ter contraído igualmente a tal maldita xanthopsia que veio a alterar-lhe a perceção das cores e o levou, por assim dizer, tal como diziam os romanos, «a ver tudo amarelo». Vincent pintou o dr. Gachet em 1890, no famoso Portrait of Dr Gachet. Reparem em alguma reprodução da pintura, se a tiverem à mão – e qualquer computador vos dá a imagem de uma – e verão em frente do médico um ramo de dedaleira com o ar mais inocente possível. Van Gogh pode ter feito o retrato do dr. Gachet, e até viria a habitar uma casa arrendada por ele, mas não era pessoa pela qual sentisse qualquer tipo de carinho. Sobre ele escreveu ao irmão: «Acho que não podemos contar com este dr. Gachet para coisa nenhuma. Em primeiro lugar, é muito mais louco do que eu. Pelo menos é essa a minha opinião. Enfim, se não é mais louco do que eu é tão louco como eu. Diz-me lá se não tenho razão: se um cego se põe a guiar outro cego pela rua, o mais provável não é que caiam os dois?». Para um louco, a carta de Vincent é bastante assisada. Já para a irmã Wilhelmina Jacob, enviou uma missiva reveladora de menor capacidade judiciosa, embora revelando um toque de humor que pode levar a uma leitura diversa: «Encontrei um bom amigo no dr. Gachet. É assim uma espécie de irmão de tal ordem somos parecidos física e mentalmente». Ora para quem assumia a sua loucura também não deixa de ser uma comparação interessante.
O exagero de amarelos na obra de Van Gogh a partir de 1889, e sobretudo após Os Girassóis, continuará a ser um mistério, e ninguém poderá afirmar com segurança que se trata de uma alteração da sua doença mental ao invés de uma simples mudança de interesse pelas cores e pelo efeito que poderiam ter nos seus quadros. Paul Gaugin, que viveu e trabalhou juntamente com Vincent durante uns tempos, referir-se-ia à preferência dele pelo amarelo desta forma: «Oh, sim! Ele adorava o amarelo, o nosso bom Vincent! Aqueles raios de sol acalmavam-lhe a alma. Aquela imagem de fogo era para ele uma necessidade. Aquecia-o». Talvez o amarelo continue a ser, para muitos, uma bizarria. Mas um mundo feito de amarelo seria sempre um mundo de sol…