O Natal da D. Antonina era, e será sempre, o meu Natal. Ainda hoje, ao ver um presépio, não posso deixar de recordar o dela. Além disso, se há um sabor da minha meninice que associo a esta quadra festiva, é o das suas rabanadas, cozinhadas em vinho com muito açúcar e canela. A D. Antonina era a nossa vizinha do andar de baixo, em Coimbra. Viúva, com um filho, ganhava a vida a apanhar malhas, isto é, a reparar meias de vidro – nome dado às meias de nylon para senhora. Originalmente apresentadas na Feira Mundial de Nova Iorque de 1939 e comercializadas a partir de 1940, estas meias vieram substituir as de seda, cujo preço era elevado.
Tal como a seda, o nylon é um polímero, mas, ao contrário da primeira, que é produzida pelo Bombyx mori, o bicho-da-seda, e é de natureza proteica (fibroína), o segundo é uma poliamida artificial. Criado em 1935 pela empresa norte-americana DuPont, o nylon começou a ser amplamente utilizado em meias a partir do fim da II Guerra Mundial, destinando-se até então, sobretudo, à produção de paraquedas. As meias de vidro eram muito frágeis; à mais pequena coisa, a malha rompia, abrindo um buraco que alastrava a todo o comprimento. Por esse motivo, havia senhoras, como a D. Antonina, que se dedicavam a consertá-las. Para isso, a meia era esticada sobre um bocal metálico, e, com uma agulha com barbela (normalmente acoplada a um pequeno motor elétrico), num movimento de vai e vem, a malha era refeita. Muitas clientes estancavam a rutura da malha aplicando sobre ela um pouco de verniz das unhas. Por essa razão, na banca de trabalho da D. Antonina havia sempre um frasco com acetona, com a qual removia o verniz das meias. O odor penetrante deste solvente, também conhecido como propanona, é um dos cheiros da minha infância.
Pessoa cristã genuinamente bondosa e meiga, a D. Antonina foi como a avó que nunca tive em Coimbra. As suas celebrações natalícias eram notáveis, e para mim, que as presenciei desde os três ou quatro anos de idade, possuíam uma magia que nunca mais encontrei. Muitos anos depois, passei a ter a oportunidade de viver o Natal germânico, tão romântico como os dos postais de Boas Festas, com paisagens de neve e pinheiros nórdicos iluminados com velas, mas continuo a achar que nada supera os Natais da D. Antonina. A grande atração era o monumental presépio que armava na sala de jantar, e do qual, pode dizer-se, constavam os quatro elementos aristotélicos: ar, terra, fogo e água. Com pelo menos um metro e meio de comprimento por cerca de metade de profundidade, era abobado por um céu azul e branco em papel, do qual pendiam estrelas recortadas em papel metalizado. Dos montes, feitos em musgo e papel pardo amarrotado, desciam os reis magos, assim como pastores e camponesas por estradas de serradura.
Além da Sagrada Família, com uma pequena fogueira aos pés do Menino, o presépio nunca ficava completo sem a simulação de um rio, que desaguava num lago. Este último tinha a particularidade de possuir água de verdade e até um repuxo. Não me consta que a D. Antonina tivesse estudado mecânica de fluidos, mas fora ela que concebera o sistema hidráulico responsável pelo esguicho: a água provinha de um irrigador de clister, cujo tubo de borracha ligava a um tabuleiro que a própria idealizara e mandara fazer num latoeiro. Para que o pequeno jato de água se erguesse no ar, bastava retirar a mola da roupa que apertava o tubo. Tudo aquilo exercia em mim um fascínio inexcedível, a que se juntava a atração pelas anilinas que, dissolvidas em água, davam cor aos papéis que formavam o firmamento e as rochas. Havia ainda o grude de farinha e água com que as estrelas eram coladas no céu… Mais tarde, ao encontrar um velho irrigador de clister no sótão da minha avó materna, também o meu presépio passou a ter um repuxo.
Tal como a árvore de Natal, cheia de chocolates e rematada com flocos de algodão em rama à laia de neve, o presépio da D. Antonina era iluminado com lâmpadas de candeeiro, envoltas em papel colorido, que, com o calor gerado pelo filamento de tungsténio, acabava por ficar acastanhado e quebradiço. Aposto que ela não sabia que tal se devia ao efeito de Joule, mas, mesmo sem ter aprendido eletricidade, era ela quem fazia toda a eletrificação, com as lâmpadas ligadas em série.
É verdade que o primeiro presépio de que me recordo, teria eu dois ou três anos, foi o que o meu pai me fez, mas os que me marcaram para sempre foram os da D. Antonina.
O Natal da D. Antonina
Pessoa cristã genuinamente bondosa e meiga, a D. Antonina foi como a avó que nunca tive em Coimbra.