Era uma noite de consoada normal, completamente tradicional. A mesa estava posta como sempre, Catarina Ramos atualmente com 38 anos, tinha 19. O avô era a alma da família, o único no meio de várias mulheres. “Foi ele que me ensinou todas as tradições, que me passou todos os valores daquilo que é a família”, começa por contar ao i. “Era um marido amoroso, um pai incrível e um senhor avô! O mais carinhoso, brincalhão e atencioso. Era aquele que dava o colinho bom”, continua.
Catarina Ramos não imaginava aquilo que aconteceria nessa noite. “Somos uma família normal e claro que, às vezes, há discussões. Não me lembro bem porquê, mas discutimos à mesa por uma parvoíce qualquer do meu temperamento de adolescente”, lembra. Felizmente, as coisas acalmaram e a noite seguiu repleta de doces e presentes debaixo da árvore de natal. “Até hoje, parece-me sempre que o que vivi foi um pesadelo”, adianta. “Acordei na manhã do dia 25 e a minha mãe estava na cozinha devastada sem saber o que dizer ou fazer. Parece que ainda ouço o seu choro na minha cabeça. O meu avô tinha morrido, o meu avô não estaria na mesa do almoço de natal… Como uma estrela cadente, tinha caído no silêncio naquela noite enquanto dormia. Morte santa. O sono levou-o”, revela, afirmando que nunca sentiu tamanha dor ou desespero. O estado de choque foi tão grande que, olhando para trás, Catarina Ramos não se recorda dos dias que se seguiram. “Ficaram só as memórias do melhor avô do mundo e o vazio de nunca mais sentir a sua mão agarrar a minha”, conta. Apesar da tristeza – muita gente tende a nunca mais viver o Natal da mesma maneira –, ficou decidida em manter as tradições do patriarca da família. “Até hoje, não deixei que nenhum Natal deixasse de ser vivido e, na mesa, estão sempre as comidas tradicionais. Era assim que ele gostava. Nos anos seguintes, fui eu para a cozinha fazer todos os doces das receitas antigas”, garante. Interrogado sobre o peso da discussão ou de algum sentimento de culpa por nessa noite ter-se exaltado, Catarina admite que durante muito tempo sentiu muita culpa. “Mas aprendi a perdoar-me porque o perdão dele já eu tinha”, explicou.
Uma prenda catastrófica “Ainda éramos do tempo das televisões a preto e branco. Portanto, isto aconteceu há uns 39 ou 40 anos”, conta Catarina Beato, de 45 anos. Os seus pais e tios eram pessoas sem grandes posses, de classe média baixa, mas, mesmo assim, conseguiram juntar-se para comprar uma televisão a cores aos seus pais, os avós de Catarina. “Juntávamo-nos sempre nos Natais na casa deles, na Figueira da Foz. Nesse ano, no dia 24 de manhã, chegámos e antecipámos a oferta, uma vez que era um bocadinho difícil de esconder uma prenda tão grande de forma discreta”, descreveu. Segundo a mesma, foi uma grande alegria. Juntos montaram a televisão e foram almoçar e tomar café à rua. “Quando estávamos a regressar, vimos uma grande confusão à volta do prédio onde moravam os meus avós. Os bombeiros também já lá estavam. A televisão tinha explodido”, lembra. Por isso, o resto desse dia, foi passado a pegar nas coisas que tinham escapado, porque a casa ardeu quase na totalidade. “Fomos passar a noite de Natal na casa de uns outros tios que tínhamos em Leiria. Foi marcante e muito triste. A tarde que seria passada a preparar as filhoses e as rabanadas, foi passada a retirar o possível de uma casa que estava completamente negra”, lamentou.
Além deste momento triste, mas que de acordo com Catarina Beato, não foi traumático, as características familiares fizeram sempre com que as consoadas nunca fossem muito fáceis de gerir. “Durante toda a vida, o meu pai teve a capacidade de colocar a minha mãe a chorar. Todas as consoadas que me lembro eram passadas na seguinte sequência: a minha mãe dizia alguma coisa, o meu pai mandava uma piada, a minha mãe não achava piada nenhuma, começava a chorar, quando ela começava a chorar, o meu avô começava a chorar, como ele começava a chorar, a minha avó também começava a chorar, quando via a minha avó chorar, a minha tia começava a chorar. Com toda a gente a chorar, eu e os meus primos ficávamos assustados e, por isso, também chorávamos”, revela.
Invariavelmente, acrescenta, a noite de consoada terminava com toda a gente a tentar conciliar-se. “Exceto o meu pai que tinha despoletado aquilo tudo e acabava por ir para o quarto amuado”, recorda. “Apesar da expulsão não me ter deixado traumas, esta segunda cena marcou-me para a vida e é por isso que chega a esta altura e eu viajo. Não quero ser obrigada a passar uma consoada tradicional”, admite.
Álcool e Violência Doméstica Para Aurora Silva, de 28 anos, desde que se lembra de ser gente, o Natal é a sua altura preferida do ano. Sempre cresceu numa casa “farta”, onde nunca faltou nada. Os Natais sempre foram vividos com música, calor, amor e muitos presentes. “Apesar de em pequena, tanto eu como o meu irmão termos tido a sorte de receber tantos presentes que, por vezes, já nem se via o chão, aquilo que sempre me marcou foi o juntar da família”, afirma ao i. Como tem família espalhada pelo país, é sempre complicado, ao longo do ano, arranjar tempo para se reunirem. “Tenho uma família grande e bastante alegre. A morte dos meus avós foi uma grande perda e existe sempre esse vazio. No entanto, temos conseguido geri-lo da melhor forma dando sempre muito amor uns aos outros”, explica.
As coisas começaram a mudar desde que o seu irmão começou a ter idade para beber bebidas alcoólicas. Os encontros de família, em particular o Natal, tornaram-se um momento de alguns excessos, já que a mesa está posta durante o dia e as bebidas estão à descrição. “As pessoas bebem um pouco a mais como é completamente natural e o ambiente é bastante engraçado. No entanto, há quase sempre um tema ou situação que acaba por mudar o ambiente. Ideologias, alguma chamada de atenção, opiniões distintas. De repente os tons das vozes aumentam e torna-se difícil de aligeirar o momento”, confessa. Um dos mais traumáticos para si ao longo destes anos, foi uma discussão entre o seu irmão e um tio precisamente na noite da consoada. “Falava-se de coisas comuns, mas tocou-se numa ‘ferida’ e os dois exaltaram-se bastante”, lamenta. A tensão foi tanta que, segundo Aurora, até se levantaram em forma de confronto. O seu irmão acabou por sair de casa e a noite ficou estragada, com os seus pais preocupados, os seus tios devastados, os seus primos confusos e ela assustada. “E estes episódios vão-se repetindo. Apesar de não me tirarem a alegria que sinto todos os anos por saber que passaremos mais um natal juntos, que temos essa sorte, existe sempre um medo que as coisas escalem e que, de repente, o Natal se estrague”, frisa.
Maria Alice, de 55 anos, cresceu num ambiente de violência doméstica. Em pequena, sendo a mais velha de três irmãs, quando pensava em Natal, uma imagem cinzenta e silenciosa ocupava-lhe o pensamento. O seu pai, agressor, nunca ligou a festividades e, quando aconteciam, para si, o álcool era o protagonista. Já a sua mãe, marcada pela violência e pelo medo, não tinha forças para proporcionar às filhas aquilo que deveria ser a noite de consoada. Na verdade, sempre viveu muito apática, assombrada pelo alcoolismo do marido. Como sempre teve de tomar conta das irmãs e sempre tentou colocar alguma cor no meio de um ambiente hostil e de escuridão, nos Natais, fazia de tudo para que houvesse um bocadinho de alegria nos olhos das mais novas. “Era muito pequena. Tive de crescer muito rápido. Não me recordo com que idade comecei a cozinhar, mas tinha de fazê-lo”, confidencia ao i, explicando que nunca faltou dinheiro, mas sim amor e equilíbrio. “Era a mais velha e tinha de segurar o teto. A minha mãe estava sempre debilitada por causa das tareias que levava e pouco conseguia fazer por nós, apesar de nos amar”, continua. Por isso, no Natal, fazia questão de montar uma árvore e era ela que ia para a cozinha fazer os doces tradicionais e escondia as prendas nos armários para haver um momento de brincadeira. “Tentava fazer alguma coisa, tentava mudar o ambiente, fazer com que nessa noite se esquecessem os horrores que vivíamos”, revela. No entanto, era sempre complicado contagiar os pais. “Jantávamos, o meu pai levantava-se e ia para o quarto, pouco dizia. Nunca valorizou nada do que fiz. Eu, a minha mãe e as minhas irmãs, passávamos o serão a ver televisão e pouco mais”, descreve. “Lembro-me de um episódio em que estávamos todos à mesa e o meu pai estava bêbado. Começou a brincar com uma das minhas irmãs que estava toda divertida, mas rapidamente passou a ser bruto. Começou a magoá-la. A minha mãe pediu para ele parar e este começou a chamar-lhe nomes. A minha irmã começou a chorar, ele bateu-lhe e ela fez xixi nas calças e foi a correr para o quarto. Até hoje, tem o trauma e é uma pessoa incontinente”, lembra Maria Alice em dor.
Ao ter filhos e construir a sua família, prometeu a si mesma que nunca, em sua casa, teria um ambiente assim. Por isso, apesar dos traumas, todos os anos, desde então, faz com que o Natal seja uma alegria para todos, tapando os buracos de uma infância roubada. “Adoro comprar presentes, enfeitar a casa por dentro e por fora. Quando os meus filhos eram pequenos, como nos dávamos bem com os vizinhos, havia sempre quem fizesse de Pai Natal. Sempre fiz questão que a magia existisse até hoje. Felizmente tenho uma família maravilhosa e, como somos tantos, o pensamento não foge muitas vezes para aquele lugar em que fui tão infeliz”, garante.
Ser de sangue não tem de significar ser família Segundo a psicóloga clínica Tânia Correia, o Natal, devido aos anúncios, aos filmes, às imagens a que fomos expostos, é visto como uma época de união e partilha em família. “A expectativa de passar por momentos semelhantes aos que fomos retendo, gera, muitas vezes, uma sensação de frustração e desilusão por não se sentir internamente o calor humano que parece existir nos outros lares”, explica.
Um outro aspeto, continua a especialista, prende-se com as pessoas juntarem-se neste dia “mais para cumprirem calendário do que propriamente por estarem intrinsecamente motivadas para passarem bons momentos juntas”. “Continuamos presos à ideia de que partilharmos laços sanguíneos é o suficiente para sermos uma família e que devemos ser gratos por ter uma, sujeitando-nos ao que esta tiver para dar (mesmo que seja prejudicial)”, alerta. “Precisamos de nos consciencializar de que a família precisa de ser um lugar onde nos sentimos vistos, escutados, seguros, protegidos e amados; mais do que os laços sanguíneos, são estes aspetos que a definem”, sublinha a psicóloga. De acordo com Tânia Correia, a verdade é que juntarmos pessoas com histórias de vida, interesses, valores, visões que diferem, mesmo sendo do mesmo núcleo familiar, “permite que existam desencontros nos pontos de vista”.
As discussões mais comuns São vários os temas potencialmente precipitantes de conflito nesta época, “variando desde as questões associadas aos gastos financeiros com a compra dos presentes, à organização das festividades (especialmente em famílias com pais divorciados ou com famílias reconstruídas e em conflito), às discórdias familiares pré-existentes e às memórias negativas e ressentimentos associados ao Natal”, esclarece, por sua vez, Elsa Rocha Fernandes, médica psiquiatra e professora convidada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Segundo a mesma, o álcool, no seu consumo excessivo, pode estar associado a conflito “uma vez que prejudica o processamento da informação necessária para inibir os impulsos de resposta – a capacidade de prever consequências negativas do comportamento – levando a possíveis respostas mais extremadas e excessivas num contexto de discussão/conflito familiar”. Além disso, um dos tópicos estatisticamente mais envolvido em discussões familiares natalícias é a “política”, a par com “conflitos familiares latentes e pré-existentes à quadra”, garante a médica psiquiatra.
Em termos de interação entre adultos, os grandes motivos prendem-se com gatilhos que existem nas relações (“feridas” que se ativam). “Por exemplo, para alguém que nunca se sentiu suficientemente boa/bom para os pais, receber a crítica de que ‘o bacalhau nunca fica no ponto’ ou ‘estás tão gorda, devias seguir o exemplo da tua irmã’, será um gatilho. Noutros casos, sobretudo quando existe consumo de álcool/drogas e/ou violência doméstica, os filhos, desde cedo, acreditam que têm de adotar o papel de cuidadores dos pais para gerir as situações”, completa Tânia Correia. Além destes casos, a perda de alguém significativo, “quando não existe abertura para expressar o vazio deixado, pode levar a uma tensão onde através da zanga se procura camuflar a tristeza que, infelizmente, não tem espaço à mesa”. “Por último, a desconexão que se sente por estarmos rodeados de pessoas que, ainda que sejam a nossa família, na verdade não conhecem a nossa essência (quem verdadeiramente somos). Tudo o que são temas que representam escolhas pessoais – casar, ter (mais) filhos, mudar de casa, encontrar um novo trabalho – apresentam margem para conflito, sobretudo se forem abordado de forma invasiva”, acrescenta.
No que toca à violência doméstica durante as festividades do Natal, esta pode ter “consequências graves para as famílias, e especialmente para as crianças que experienciam grande sofrimento emocional numa época que deveria ser de amor, paz e felicidade”, afirma Elsa Rocha Fernandes.
“O receio e medo que as vítimas de violência física e emocional apresentam podem ser devastadores, quer pelas lesões físicas e risco para a própria integridade física, quer pelo trauma que fica associado à época festiva, que agora se associa a sentimentos de tristeza, a isolamento e solidão que passam a ser vividos na dinâmica familiar disruptiva em que se encontram”, explica, acrescentando que muitos dos abusadores usam o Natal, com o consumo excessivo de álcool e as preocupações financeiras da época para “desculpar os seus comportamentos abusivos ou até culpar as vítimas pelo abuso”. “O período do Natal e encerramento das escolas durante as férias, podem reduzir as oportunidades para as crianças denunciarem os abusos e terem acesso a apoio”, alerta ainda.
Relativamente ao luto, esta experiência é diferente para cada pessoa. No entanto, de acordo com a médica psiquiatra, “as emoções vividas podem estar exacerbadas no Natal e nas épocas festivas, uma vez que estas, estão associadas a momentos de amor e partilha familiar”. “Neste caso, os sentimentos de saudade e a ausência do familiar falecido tornam-se mais intensos. Todo o ambiente em torno do Natal, como os momentos musicais e as tradições que eram mantidas com quem já não está presente podem acentuar os sentimentos de tristeza. Para muitos, mesmo que não seja possível apagar a dor que a saudade traz, a melhor forma de recordar quem já não está, passa por, partilhar com a família memórias envolvendo a pessoa, manter uma tradição que mantinham juntos ou criar uma nova, talvez ouvir a sua música favorita ou mesmo visitar a campa”, revela. Por forma a melhorar o convívio familiar nesta época, Elsa Rocha Fernandes deixa alguns conselhos: gerir expectativas, evitando estabelecer padrões muito elevados (e de perfeição), que podem levar a frustração e desilusão; escutar de forma empática, atenta e procurando entender a perspetiva do outro evitando catastrofizar a informação ou saltar para a pior conclusão ajudará a um diálogo mais salutar; deve ainda clarificar-se os mal-entendidos do momento e reservar a resolução de velhas discórdias do passado para outra altura, que não a época festiva. Por fim, podem usar-se técnicas de relaxamento, se necessário, como a respiração profunda e moderar o consumo de álcool; planear o melhor possível e com antecedência as compras de presentes, poderá evitar os constrangimentos dos últimos dias de compras; é ainda aconselhável priorizar os momentos de partilha em relação aos gastos excessivos, permitindo-se presentear a família apenas com uma lembrança, ao invés de presentes caros, como forma de reduzir o stress associado aos gastos excessivos e preocupações financeiras da época.