Marlene Vieira. “Dificilmente olho para as coisas negativas. Tem de haver sempre uma solução”

Aos 42 anos, conta com uma experiência profissional de 30. Chef reconhecida nacional e internacionalmente, Marlene Vieira já passou por vários restaurantes e hotéis de renome, assim como pelo restaurante Alfama, em Nova Iorque, tendo os seus pastéis de nata sido elogiados pelo New York Times.

Marlene Vieira, proveniente de uma família em que os pais eram talhantes, teve o seu primeiro contacto com a culinária aos 12 anos, quando trabalhou num restaurante durante as férias. Aos 16 anos, ingressou na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira, que marcou os seus trajetos pessoal e profissional. O início do seu percurso profissional inclui uma passagem pelo Forte de São João Baptista, em Vila do Conde, e uma mudança para Manhattan aos 21 anos, onde contribuiu para o restaurante Alfama, especializado em comida portuguesa.

De volta a Portugal, Marlene Vieira foi chef residente no restaurante Manifesto, ao lado do chef Luís Baiena, e posteriormente liderou a cozinha do restaurante Avenue, em Lisboa. A sua experiência também abrange hotéis de renome, como o Sheraton do Porto, e a liderança no restaurante O Panorâmico, em Oeiras.

Além da sua atuação como chef, Marlene Vieira foi jurada e professora em duas temporadas do concurso Chefs Academy, transmitido na RTP 1. Em 2019, participou no XX Fórum Gastronómico da Corunha, onde apresentou uma amostra da sua cozinha, e em 2020, esteve presente no Festival Atlântico Gastronómico Saborea Lanzarote. No mesmo ano, enfrentou a pandemia no restaurante Zunzum, sendo que não baixou os braços e dedicou-se ao take-away. 

A covid-19 não a fez parar e, no ano passado, inaugurou Marlene, – sim, com a vírgula –, aquele que considera o seu “mais recente bebé”. No entanto, espera, no futuro, ter uma boa pastelaria na capital e, quiçá, um restaurante no campo.

Como é que foi nascer e crescer na Maia?

Foi muito bom. Tenho muito orgulho do sítio de onde vim. Sinto que fui, de certa forma, privilegiada. Tive um contacto direto com a terra. Sinto hoje, olhando assim à distância, que tinha uma liberdade que hoje as crianças não têm. Portanto, o meu meio é muito pequeno, obviamente, e o que hoje pode ser um luxo, dizem que é pobreza, mas eu acho que é um luxo. Hoje em dia eu olho e digo que aquilo é verdadeiramente um luxo, podermos ter acesso à terra, aos ingredientes. Acho que foi uma sensação de ser livre, nascer e crescer na Maia foi ter o privilégio de poder crescer num ambiente saudável, de ar puro. Foi muito bom, acho que eu não trocaria isso por nada, por nenhum outro sítio, por nenhum outro lugar.

Quais são as melhores memórias da sua infância?

Têm muito a ver com comida. Acho que toda a gente tem essa ligação. Mas o forno a lenha e as torradas quentes feitas na fornalha… Não esqueço! Quando vinha da escola, o desejo de chegar à casa e ver uma caneca de leite quente ou de cevada, caminhava a pensar nisso! Comia mas torradas, porque o norte é muito frio. Então os invernos eram invernos muito rigorosos, três meses diretos. As coisas más não me interessam muito, mas sim as coisas boas. As memórias têm muito a ver com o campo, esta sensação de liberdade, correr no campo, à vontade, andado de bicicleta, à vontade, sem ter medo de vir um carro, ou sem ter medo de vir um ladrão… Nós éramos verdadeiramente livres! Tenho muita pena de que a minha filha não possa ter essa liberdade que eu tinha.

Com 12 anos, ia entregar carne com o seu pai a vários restaurantes e o Costa Brava despertou a sua curiosidade. Porquê?

Era muito diferente dos outros restaurantes, em que os pratos eram quase os mesmos, as coisas eram quase as mesmas. E o Costa Brava era um restaurante super moderno, para a altura. Até pela forma que os cozinheiros se vestiam, já usavam jaleca e barrete. E o modo como comunicavam… Não tinha nada a ver como aquela que via nos outros restaurantes onde entrava. Aquilo parecia um ambiente familiar, mas ao mesmo tempo com ordem. É o que chamamos de caos organizado. Porque há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, mas há ali um espírito militar, de certa forma. Cada um está a fazer a sua tarefa, e de forma muito rigorosa. Gosto disso, dizia aos meus pais que queria ir para a tropa quando era criança. Se bem que a Isabel, que era a chefe de cozinha, era uma menina super afável e amável, só que ela tinha sido formada com a formação de cozinheiro profissional, em que há muito rigor, muita organização. Há ali uma hierarquia de comando. E aquilo atraiu-me, por alguma razão. É como se tivesse feito um raio-x e pensado “Pertenço a este mundo!”. E pedi ao meu pai para ir para lá nas férias de verão. E o meu pai disse: “Tudo bem. Logo se vê!”. E estamos aqui hoje [risos]. 

Ao Público, explicou que chegou “a dormir num colchão que os donos tinham por cima do restaurante” e que quase se esqueceu da sua família. Foi aí que entendeu que estava apaixonada por este mundo?

Os meus pais ficaram assustadíssimos, porque não é suposto uma miúda de 14, 15 anos, que devia estar a querer ir para as discotecas e fazer coisas que os jovens fazem, não é, querer cozinhar. Eu estava mergulhada de cabeça e tronco e membros naquele mundo. Claro. E nem queria ir dormir a casa, porque não queria perder nenhum momento de aprendizagem. E eu achava que os meus pais podiam tentar impedir-me. Do estilo “Apanhei-te em casa, agora não sais”. Fiquei ali muito vidrada, porque eu gosto de… Começo uma coisa e dificilmente a abandono! Fico muito obstinada. Isso pode ser bom ou mau, porque às vezes a teimosia é burrice, não é? A questão é que quando fazemos coisas com as nossas mãos, e que vemos ali à nossa frente, há uma satisfação imediata. Terminamos um prato ou uma sobremesa e vemos o resultado final rapidamente. E claro que eu ali aos 16 anos tive um bocadinho de dúvidas, porque eu era muito obcecada também com o desporto. Agora não sou nada, mas na altura era. E as duas coisas não se conciliavam, porque hoje em dia já temos uma vida, podemos dizer, normal, de 8 horas de trabalho. Mas quando eu comecei aos 12, e depois durante muitos anos, nós tínhamos sempre horário para entrar e nunca para sair.

Como é que foi estudar cozinha e pastelaria na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira?

Foi um curso intenso, pois na altura os cursos todos eram muito intensos, começávamos às 8 da manhã, só terminávamos às 6 ou 7 da tarde. E tínhamos aulas normais: português, matemática, inglês… Era um curso de equivalência, portanto, um curso profissional com equivalência ao 12º ano. Seguíamos com uma carteira profissional de cozinheiro de primeira e de pasteleiro de segunda, se não estou em erro. Portanto, nós tínhamos de saber efetivamente, tínhamos de ser efetivamente cozinheiros de primeira. Tínhamos de saber muito bem o que estávamos a fazer. E por isso o curso era exigente, era bom. Ainda hoje sei muitas receitas do curso. Receitas de cor! Normalmente entravam 30 alunos, acabavam 14 ou 15, porque era muito difícil. A verdade é que era um teste. Quem aguentava estar ali desde as 8 da manhã às 7 da noite, que são 11 horas todos os dias, ao fim e ao cabo é uma prova de resistência!

Pensou em desistir.

Sim. Porque eu tenho a mania da justiça, sou justiceira. Era um bocadinho refilona com coisas que eu achava que eram injustas. Então, ficava muitas vezes de castigo. Cheguei a uma altura em que, para além daquelas 11 horas, fazia muitas mais. Ficava até às tantas da noite a determinado ponto pensei “Calma, também sou humana!”. Foi muito difícil. Foi no terceiro ano, no fim do primeiro semestre. Sei que tinha um formador que era mesmo muito rígido. Hoje em dia já conversamos e ele diz que faziam isso porque gostavam de mim, e sabiam que me podia levar ao limite. Eu não concordo com esse método, de pressionar ao ponto de deixar a pessoa na exaustão. E foi isso que me aconteceu. Basicamente foi levar-me à exaustão máxima. Não sei se funcionou. Por acaso eu não desisti, mas poderia ter acontecido. E era um bocado desnecessário, digamos assim. 

Como é que foi o seu estágio?

O primeiro estágio foi no antigo Sheraton do Porto, que agora é Porto Palácio. Por acaso encontrei uma mulher chefe também. Não fui eu que escolhi, na altura as escolas é que escolhiam os nossos estágios, nós selecionávamos algumas opções e eles depois orientavam-nos para um. O chefe executivo era o Hélio Loureiro e a Adosinda Gonçalves era chefe de cozinha, portanto era a pessoa que estava conosco diariamente na cozinha, porque era uma mulher incrível, com uma personalidade parecida com a da Isabel do Costa Brava. Tive muita sorte neste trajeto ao fim ao cabo. Fui apanhando chefes, mulheres que eram inspirações também e que eu bebia ali daquela aprendizagem, apesar de que elas eram muito mais serenas do que eu sou, não é? Eu sou uma irrequieta, não é? Acelerada e muito refilona e… Elas não, elas eram muito tranquilas, pessoas muito assertivas na forma de trabalhar. No segundo estágio, o chefe obrigou-me a ficar na escola. Penso que deve ter sido por um castigo qualquer, porque não sei bem, mas a verdade é que a escola fazia muitos serviços extra. Serviços de eventos, de banquetes, e eu já sabia fazer banquetes desde os 12 anos. Para mim não foi nada bom, porque eu não aprendi nada de novo.

E o seu primeiro trabalho oficial?

A descontar verdadeiramente, foi na Escola de Hotelaria do Porto, porque eu ganhei o diploma de melhor aluna e tínhamos uma bolsa que era para ficarmos monitores estagiários noutra escola do Turismo de Portugal. Por um lado eu gostei da ideia porque um dos meus sonhos em criança era ser professora, gostava de poder ensinar. Aceitei e ganhava o ordenado mínimo na altura pago pelo Estado, ganhava 80 contos, mas já na altura não era suficiente para viver. Eu era só uma miúda, sem filhos, sem nada, só pagava a renda de casa e não era suficiente para viver. Mas tinha sido pela restauração que me tinha apaixonado. E aquilo era pouco para mim. Então, decidi candidatar-me a vários sítios. Calhou-me, por incrível que pareça, um dos chefes do Ritz. Ironia do destino. Era consultor de um hotel, do primeiro hotel de charme do país, que era um boutique hotel, que era no Forte São João Batista, em Vila do Conde. Fiquei muito amiga de um cozinheiro que lá trabalhava, o Francisco, e ele decidiu ir para Nova Iorque. Tínhamos ficado muito amigos, quase irmãos inseparáveis, e perguntou-me “Olha, queres vir?”. E eu disse “Claro, vou também!”. Fomos para lá os dois para um restaurante de cozinha portuguesa chamado Alfama, em Manhattan, e foi uma grande loucura porque eu não sabia fazer cozinha portuguesa, estava habituada a ter uma formação clássica, cozinha internacional, cozinha francesa, é mesmo assim, e chego lá e comecei pela pastelaria, porque era aquilo que dominava. 

No Alfama, os seus pastéis de nata tornaram-se famosos e até foram elogiados pelo New York Times. 

Sim, isso foi incrível! Depois, vim abrir o Sheraton com a equipa do chefe Jerónimo Ferreira em 2003. Foi lá que conheci o Ricardo Costa, que hoje é o chefe do Yeatman, fizemos parte também da mesma equipa de abertura do hotel, entre outros o meu marido. E aquela cozinha daquele hotel foi uma verdadeira escola para muitos jovens! Foi o sítio onde trabalhei mais na minha vida. Podemos mandar a nossa equipa embora, mas nós temos de garantir que o trabalho fica feito. Então era isso que eu fazia. Para não esgotar toda a gente, esgotava-me a mim um bocadinho. Foi essa a minha estratégia, fosse certa ou errada. Estive lá três anos, acabou ali um ciclo, e fui trabalhar para o Degusto com o Vítor Claro. Fui seguindo muito as novas técnicas, que iam seguindo no mercado internacional. Nessa altura, surgia a cozinha molecular. Depois chamaram-me para abrir um hotel no Campo Real, e estou no resort, que fazia parte do Sheraton. Era o mesmo grupo. 

E como foi participar no concurso Chef Cozinheiro do Ano pela primeira vez?

Cheguei ao fim e fui para o Manifesto, a convite do Luís Baiena! Era uma boa oportunidade para dar um salto para a cozinha de fusão. Desenvolvi a cozinha mais portuguesa de sempre, com técnicas do mundo! Que, na verdade, é aquilo que faço hoje no Zunzum. O que fazíamos era técnicas do mundo com ingredientes portugueses muito bons e alguma da técnica molecular. Mas eu ao fim de um ano… Já sentia que tinha de fazer a minha cozinha. Já tinha alguma bagagem, sentia a necessidade de juntar todo o meu conhecimento e fazer a minha cozinha. E foi quando eu decidi sair. 

E o que fez?

Estive sete meses só a dar aulas. Eu dei sempre aulas no meio disto tudo, é importante dizer, nas minhas folgas. Na altura o dono do Avenue, que é na Avenida da Liberdade, queria uma cozinha portuguesa num ambiente de fine dining. No dia da inauguração, o Sheraton estava a contactar-me para abrir o primeiro restaurante português no Dubai. Entretanto, decidiram fechar o restaurante e fiquei em pânico porque estava a meio de um projeto. Enviei um email ao Aguinaldo Silva, nosso cliente habitual, a perguntar-lhe se queria comprar o restaurante. E ele comprou-o! Fez-me a vontade [risos]. E mudei o conceito: fiz cozinha de autor, com menu de degustação… Mais alta cozinha. Foi aí que comecei a ter as grandes oportunidades: fiz o primeiro programa televisivo, tive o primeiro prato do ano pela Time Out… Até que…

O que aconteceu?

Depois, o restaurante fechou no dia em que a minha filha nasceu – sem eu saber –, fiquei desempregada, mas tinha o Time Out. Mas eu tinha um contrato de trabalho em que penhorei o meu ordenado para pagar o Time Out. Ter uma filha naquele momento foi avassalador. Felizmente, o Time Out começou a dar muitos frutos e foi quando abri o Panorâmico no Taguspark. Quando tive a oportunidade de apresentar um projeto para esta zona [Terminal de Cruzeiros de Lisboa], ganhei e disse “Pronto, monto a cozinha de produção e saio do Panorâmico”. Só que aconteceu uma coisa, lembra-se?

A pandemia!

A minha vida é assim [risos]. Chorei muito, gritei muito, fugi com a minha filha para o Bombarral… Foi uma semana de histerismo, mas pensei “Tenho de trabalhar, toca a fazer take-away!”. E no meio disto tenho sorte porque, de uma maneira ou outra, vou-me safando. 

É sorte ou muito trabalho?

Dificilmente olho para as coisas negativas. Tem de haver sempre uma solução. Nasci assim, é o meu instinto de sobrevivência.

Que cheiros e sabores marcam a sua época natalícia?

Canela, limão, calda de açúcar, vinho do Porto… O cheiro dos fritos de Natal! Não há Natal em Portugal sem ele! E, depois, sem dúvida, o bacalhau. A minha avó dizia: “Durante o ano posso comer rabos de bacalhau. No Natal, compro o melhor bacalhau que existe no mercado”. Quanto mais grosso fosse o lombo de bacalhau, melhor! E, claro, o bom azeite! Não tenho o polvo nem o peru na minha tradição. Somos muito mais conservadores. Aqui em Lisboa há muito mais abertura àquilo que vem de fora. E recuso-me a comer sobremesas como bolo rei e rabanadas fora da época de Natal!

Que conselhos dá a quem vai cozinhar nesta consoada?

Muita atenção às cozeduras e à qualidade dos ingredientes. Ou então pode comprar o take-away do Zunzum [risos]! Os pratos principais são para as pessoas finalizarem em casa com a receita da chef Marlene! Para não terem aquela sensação de comida aquecida, que é péssimo. As entradinhas são: salada de polvo, empadas de pato, sapateira, pataniscas. Os pratos principais são peru, bacalhau e o polvo. As guarnições são escolhidas à parte: batata a murro, batata recheada, arroz de frutos secos, esparregado, açorda… As pessoas compõem a sua ceia. As sobremesas vão finalizadas e até podem comprar pão. As sobremesas são rabanadas de brioche, filhoses com recheios de doce de caramelo ou doce de chocolate, aletria, arroz doce e pudim Abade de Priscos.

Que planos tem para o futuro?

Gostava muito de ter uma pastelaria em Lisboa, como aquelas muitíssimo boas que há no Norte! E, quem sabe, estar no meio do campo a fazer cozinha tradicional!