Governo Sectário e Discriminatório

Não devemos permitir que os governos controlem a nossa consciência e muito menos que nos tornem agentes da injustiça. A “desobediência civil” é uma forma de luta legítima e pacífica contra a opressão e os atropelos a que estão sujeitos os mais fracos (Henry Thoreau, 1849).

Tudo começou, como tudo normalmente começa. Em Outubro e Novembro de 2022 apareceram notícias nos diversos órgãos de comunicação social relatando que as empresas detentoras das Parcerias Público Privadas (PPP) rodoviárias queriam aumentos de 10% para 2023; a inflação nessa altura estava ligeiramente superior a 10%. O Primeiro-Ministro com ar sério e arte natural de bem representar, faz o seu teatro do costume comentando que “os portugueses estão a sofrer com a elevada inflação e não compreenderiam que as PPP fossem aumentadas 10%”. No final de Dezembro apareceu o actual Secretário-Geral do Partido Socialista, o Ministro Pedro Nuno Santos, a comunicar ao País que as portagens seriam aumentadas APENAS 7,8% (4,9% de aumento directo nas portagens e 2,9% via orçamento do Estado). Umas semanas depois ficámos a saber que a inflação de 2022 ficou nos 7,8%. Há cada coincidência…

No artigo 6º da Portaria 1087-A de 2007, que surgiu aquando da criação de Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCI), consta que os preços têm de ser actualizados no início de cada ano civil, com base na inflação do ano anterior. Ou seja, semelhante aos contratos das PPP rodoviárias. Que fez o Governo? Não actualizou os preços. As Unidades de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) tiveram de suportar o aumento generalizado dos preços devido à elevada inflação, assim como o aumento do salário mínimo e os restantes profissionais das UCCI não tiveram qualquer aumento de salário.  Por sua vez, os funcionários públicos tiverem dois aumentos salariais em 2023. Que dizer desta disparidade? Discriminação? Sectarismo?

Dia 7 de Dezembro de 2023, 1h antes do Sr. Presidente oficializar a demissão do Governo, eis que acontece mais um acto da arte de bem representar. O Governo chama à pressa os representantes do sector social e assinam publicamente, para todos os órgãos de comunicação social transmitirem (e claro! todo o povo ver), o compromisso de cooperação para o sector social. O Primeiro-Ministro elogia, faz juras de amor e os representantes do sector devolvem com veneração. A CNIS e União das Misericórdias elogiam 8 anos de perseguição e miséria (cujo expoente máximo foram os 2 anos de pandemia com custos a subir exponencialmente, o salário mínimo também e o sector da saúde recebeu chorudos reforços orçamentais, mas para as UCCI nem 1 cêntimo, nem uma máscara!), choram a demissão do Governo. Vão ter muitas saudades. Só faltou mesmo apelar ao voto no PS. Na página 40 ponto 13 do documento, que todos assinaram, o Governo compromete-se a aumentar os preços dos cuidados continuados até ao final do ano. O Ministro da saúde comenta em conversa que será até ao Natal. O Natal passou, o ano também, e nada. Mais uma vez, como em tantas outras, a palavra não tem valor, bem como não tem qualquer valor um documento assinado (e desta vez pelo punho do próprio Primeiro-Ministro). IPSS, Misericórdias, outras Organizações com e sem fins lucrativos desesperam, anunciam que não aguentam mais. O dinheiro não chega para pagar as contas e os salários. Recebo vários telefonemas, sms, mails de pessoas aflitas a perguntar se “há novidades”. Muitas não aguentaram e já fecharam mais de 300 camas desde 2021. Outras estão à beira de encerrar e anunciam cortes na qualidade do serviço prestado (imitando assim o sector público) numa tentativa desesperada de não deitar fora anos de esforço e dedicação ao serviço público na saúde. Profissionais dos hospitais desesperam por não terem meios humanos e físicos para lidar com os doentes, os quais por sua vez desesperam por assistência. Tanta falta que fazem aquelas mais de 300 camas… Aqueles que elogiaram e veneraram o Governo, não têm agora uma palavra a dizer sobre mais este incumprimento. Estamos em Janeiro. Mais um aumento do salário mínimo, isto é, mais custos elevados com salários (e mais uma vez sem que se consiga aumentar salários a quem recebe pouco mais que o mínimo), além dos custos resultantes de uma inflação ainda elevada. E a receita é a mesma de 2022 (sendo que no espaço de 13 anos existiram apenas 2 aumentos – 2019 e 2022). Não há milagres.

O Presidente da República diz que o PRR está atrasado. Deu tempo ao Parlamento, deu tempo ao Governo, apenas há eleições a 10 de Março, uma eternidade. Tudo por causa do PRR. O Primeiro-Ministro diz que o PRR decorre a bom ritmo. O Ministro da Saúde anuncia a abertura dos concursos para mais camas em Junho de 2023. Chegámos a Dezembro de 2023 com os concursos (que só abriram já próximo do final do ano e que fecharam em Novembro e Dezembro) de todas as regiões, excepto a de Lisboa e Vale do Tejo que ainda nem sequer abriu. É tão somente a região que, sozinha, terá mais de metade das novas camas previstas no PRR. Em Março de 2023 reuni com a direcção executiva do SNS. Perguntei para quando o aviso do PRR para mais camas nos cuidados continuados? Resposta: O Norte tem o aviso pronto, faltam as outras regiões. Perguntei se os avisos não eram todos iguais? E se o Norte não poderia passar o documento já produzido às restantes regiões, se não deveria ser tudo igual (com eventuais pequenas diferenças) e centralizado? Não, são 5 documentos semelhantes produzidos individualmente. Que dizer disto?

Anuncia-se que o PRR dá 100% das verbas a fundo perdido para construção e compra de viaturas. 100% de 40% (do que verdadeiramente custam as obras e as viaturas) é isso mesmo, 40% a fundo perdido e não 100%. O Orçamento de Estado para 2023 (sim não é engano, 2023) aprovou a devolução do IVA no PRR. A medida ainda não entrou em vigor passado 1 ano. E tanta falta que este dinheiro faz para ajudar aos tais 40% que falei anteriormente.

Ou seja, o PRR corre bem como está bom de ver. Se perdermos os fundos, paciência, mantém-se o País pobre; que é a forma de nunca perder outros fundos. Até um dia… E vamos devagarinho com o PRR que os hospitais públicos aguentam. Aí aguentam, aguentam. Até um dia também…

Esta malta é assim. Discrimina e prejudica uma parte dos cidadãos (e certos sectores) para beneficiar e favorecer outros.

Até quando aceitamos isto?

José Bourdain, Presidente da Associação Nacional dos Cuidados Continuados