No Corno de África, o novo ano trouxe uma novidade geopolítica. A Somalilândia irá garantir aos navios etíopes acesso ao Mar Vermelho. Em contrapartida, a Etiópia deverá tornar-se o primeiro Estado a reconhecer internacionalmente a República da Somalilândia.
O líder da Somalilândia, Muse Bihi Abdi, anunciou «com imenso orgulho» o «acordo mutuamente benéfico entre a Somalilândia e a Etiópia» que estabelece que «em troca de 20 km de acesso ao mar para as forças navais etíopes, concessionadas por um período de 50 anos, a Etiópia irá reconhecer formalmente a República da Somalilândia». O acordo abre um precedente importante, uma vez que se trata do primeiro Estado a reconhecer a Somalilândia.
Gigante encravado e aspirações independentistas
A Etiópia perdeu o acesso ao mar após a secessão da Eritreia. Nas últimas décadas, era através do Djibouti, país onde vários países estabeleceram bases militares, que garantia esse acesso, mediante o pagamento de cerca de 1.5 mil milhões de dólares por ano. A possibilidade de utilizar o Porto de Berbera, localizado no Golfo de Áden, traduz-se numa enorme oportunidade geopolítica e geoeconómica para Adis Abeba.
A Somalilândia, ex-protetorado britânico que se declarou autónomo da Somália em 1991, tem como objetivo ser internacionalmente reconhecida como Estado independente e soberano. A autonomia do território, onde vivem cerca de 4,5 milhões de pessoas, manifesta-se concretamente no facto de ter constituição, governo, moeda e passaporte próprios.
Mas a ambição independentista colide com a política de Mogadíscio de ‘uma só Somália’. Recentemente, o Presidente do Uganda, Yoweri Museveni, ofereceu-se para mediar conversações entre Hargeisa e Mogadíscio, mas a Somalilândia declarou que só aceitaria o diálogo mediante o reconhecimento do princípio de dois Estados. Há duas semanas, a agência de notícias somali tinha anunciado que Somália e Somalilândia retomariam as conversações sob mediação do Djibouti. A questão cria divisões também nos Estados Unidos, onde a Administração Biden subscreve o princípio de ‘uma só Somália’, mas o Congresso tem defendido a cooperação económica e de segurança com Hargeisa.
Para além do reconhecimento diplomático, o acordo traz outras vantagens para Hargeisa: abre as portas para a cooperação em matéria de segurança mediante a construção de uma base militar; prevê que a Somalilândia assuma uma participação na Ethiopian Airlines; e cria condições para o aceleramento do desenvolvimento comercial da região.
Um Estado frágil numa região instável
O Governo somali contestou a legalidade do acordo, declarando-o nulo: «A Somalilândia é parte da Somália como estabelecido na Constituição Somali, e por isso este passo está em clara violação da soberania e unidade do país». O Presidente Hassan Shekh Mohamud afirmou que «a Somália pertence aos somalis», declarando que o país não iria permitir «que um centímetro de terra, mar ou céus fosse violado».
Mas para o Governo somali, que já apelou junto das Nações Unidas e da União Africana, não será fácil travar o acordo. O país, que em dezembro aderiu formalmente à Comunidade da África Oriental, continua refém de um longo e difícil processo de transição, que inclui negociações entre clãs, a passagem de um sistema de eleições indiretas para o de ‘uma pessoa, um voto’ e a definição de um modelo federal a ser inscrito na nova constituição. Apesar de avanços na frente securitária, com o recuo do grupo terrorista Al Shabaab em algumas regiões, e de uma relativa estabilização política desde a eleição (indireta) de Hassan Sheikh Mohamud, a situação mantém-se frágil.
O acordo pode suscitar tensões adicionais entre Adis Abeba e o Cairo, já em rota de colisão por causa das águas do Nilo. Em outubro, Abiy Ahmed declarou o imperativo de assegurar acesso ao mar, libertando os etíopes de uma «prisão geográfica» e referindo-se ao Mar Vermelho como uma «fronteira natural» da Etiópia. Uma ambição vista com preocupação pelo Egito, que já declarou estar solidário com a Somália.
Abre-se assim uma possibilidade de redefinição dos equilíbrios geopolíticos, numa região marcada pela guerra civil, crises humanitárias e terrorismo.