Funchal. A deprimente velhice de um navio fantasma

Um dos maiores orgulhos da Marinha Mercante Portuguesa, o paquete Funchal tem passado os últimos anos da sua existência numa maré vaza e sem futuro. As promessas multiplicam-se de o fazer regressar aos mares. Quem o vê na doca de Santa Apolónia contempla apenas o destroço, testemunha triste de uma antiga opulência.

Para mim, o Funchal é um velho senhor que merece respeito e carinho como um avô: em 1968 embarquei nele no Cais da Rocha de Conde de Óbidos em direção à Madeira e à cidade que lhe deu o nome. O meu pai fora colocado como juiz em Santa Cruz, um lugar minimalista, que pouco mais era do que uma aldeia, tão, mas tão distante de tudo o que é hoje. Toda a ilha não passava de um rochedo no meio do Atlântico no qual as mais curtas distâncias demoravam horas e horas a percorrer, curvas e contracurvas entrando e saindo nos recortes costeiros, o esforço de subir aos montes, o perigo de descer os vales. Foi, provavelmente, um dos tempos mais felizes da minha inconsciente infância. Não sentia falta de televisão nem de telefones, os rádios obrigavam a atentos minutos de sintonização, nem sempre bem conseguida, da janela do meu quarto via as Ilhas Desertas para lá de um pequeno espaço de mar, ficava mesmo em frente ao Ilhéu Chão, não fazem ideia de como hoje ainda o Ilhéu Chão ocupa na minha memória um lugar especial nas recordações que tenho dessa ilha que ficava no ponto mais alto da ternura.

A viagem foi dura, ar encapelado, enjoos continuados aliviados pela ventania que varria o convés. Agora, quando passo pela Doca de Santa Apolónia, dói-me ver aquele destroço branco (em 1968, o seu casco era negro de azeviche, orgulhosamente impante sobre as ondas rebeldes, branco era o Santa Maria, outro vencedor dos oceanos que lhe fazia concorrência), tal como já doía quando, há meia dúzia de anos, estava ao abandono ali pela zona doCais da Matinha. Tantas e tantas promessas por cumprir. Que fora comprado por uma companhia grega que queria recuperá-lo para cruzeiros no Mediterrâneo. Que havia ingleses interessados em fazê-lo renascer para viagens entre a Madeira, as Canárias e Gibraltar. Pelos vistos nada se fez. A ferrugem continua à vista nos pedaços onde não levou tinta aparentemente recente. Agora vejo-o quase todos os dias e não sei se sinto saudade se comiseração.

Nascido em Fevereiro de 1961

Quando subi a bordo do paquete, nesse ano de 1968, quase cheirava a novo. Foi construído pelo estaleiro Helsingør Skipsværft A/S, na Dinamarca, por encomenda da Empresa Insulana de Navegação, com projeto de Rogério de Oliveira. Foi o maior navio de passageiros construído na Dinamarca à data da sua entrega em outubro de 1961, tendo sido lançado ao mar a 10 de Fevereiro de 1961.

O Funchal não tinha o porte gigantesco dos seus companheiros Infante Dom Henrique e Príncipe Perfeito. Não ia, inicialmente, para lá dos 400 passageiros – 80 de 1.ª Classe, 156 de turística A e 164 de turística B, além de 170 tripulantes – embora depois essa capacidade tenha sido expandida, mas também não deixava por isso de ser uma nave de grande beleza. Depois, o paquete sofreu profundas remodelações de forma a transformá-lo num navio de cruzeiros, com o seu lindíssimo e convidativo Convés Promenade. Abandonava assim a parceria com o outro transportador da companhia, o Angra do Heroísmo, as visitas ao Funchal e Ponta Delgada, com algumas excursões às Canárias, e tornava-se frequentador de outros portos, sobretudo do norte da Europa, como Dover ou Zeebruque, mas também do norte de África, como Ceuta ou Casablanca. 

Andemos para trás no Tempo, assim mesmo com maiúsculas. Em 1945, o famoso ‘Despacho 100’ conduzira a Marinha Mercante portuguesa para uma era de renovação e modernização sem igual na História do país. A velha tradição marítima lusitana via agora nascerem o Império, o Niassa, o Angola, o Uíge, o Angra do Heroísmo, o Amélia de Mello, o Funchal, o Vera Cruz, o Santa Maria, o Príncipe Perfeito… Palácios flutuantes que não deixam de fazer soar campainhas nas memórias da malta da minha geração. Agora demos um passo de quase vinte anos: em 1973, o Angra do Heroísmo foi vendido e a Insulana tentou o abate do Funchal, contrariado pelo Ministério da Marinha e pelo próprio almirante Américo Tomás que consideraram haver condições financeiras para manter o navio. No ano seguinte, mudaria de proprietário, comprado pela Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos. Talvez o Presidente da República também tenha sido, como eu, tocado pela nostalgia: um ano antes, foi a bordo do Funchal que acompanhou o transporte dos restos mortais de Pedro IV de Portugal para o Brasil, sob escolta militar.

O Funchal viajava muito. Em épocas como atravessamos recebia centenas e centenas de passageiros em festa, decididos a terem uma Passagem de Ano diferente. Então saía de Lisboa, fazia escala no Funchal, e atravessava o Atlântico para bordejar o Brasil e a foz do Rio de La Plata antes de regressar à Europa, geralmente via Canárias. A sua função primordial era, no entanto, a ligação marítima regular entre Lisboa e as ilhas dos Açores, da Madeira e das Canárias, efetuando mensalmente duas viagens consecutivas com o itinerário Lisboa – Funchal – Tenerife – Funchal – Lisboa seguidas de uma viagem aos Açores via Funchal. Integrava na década de 1960 uma importante frota de navios e passageiros portugueses constituída à época por mais de vinte unidades, com destaque para os navios Infante Dom Henrique, Santa Maria, Vera Cruz e Príncipe Perfeito, os quatro maiores paquetes portugueses, abatidos em 1977 (quando da venda para serviço estático em Sines), 1973 e 1976, respetivamente.

O avião matou os grandes paquetes. Não se riam para já e não me atirem à cara aqueles prédios de dez e doze andares que entopem o Cais de Santa Apolónia todos os dias num negócio que pode ser muito bom para o Porto de Lisboa, proprietário dos espaços portuários da capital, mas que dá apenas meia dúzia de tostões às lojas de indianos de Alfama e polui mais do que a Segunda Circular em hora de ponta. Estamos a falar dos anos 70, do fim da Guerra Colonial (os grandes navios serviram para a deslocação de tropas idas e vindas dos Ultramar), e da facilidade com que, por preços razoáveis, se chegava ao Funchal ou a Ponta Delgada numa hora ou duas e não em 40 ou 48 horas como por mar. Os paquetes perderam a magia e a utilidade – sobravam os trajetos turísticos de cruzeiro mas, entretanto, outros bem mais modernos e confortáveis começavam a tomar o seu lugar, pertencendo a grandes empórios financeiros – e iam sendo entregues para abate porque a sua manutenção era demasiado dispendiosa. Imperial, o Funchal sobreviveu. E continua vivo apesar daquele seu aspeto tão morto. Vejo, quando passo, gente que nele trabalha, reforçando vigas, pintando espaços que a ferrugem corroeu. Talvez tenha ainda futuro. Merece ter futuro quem teve um passado tão belo…