Saída de Charles Michel lança onda de choque em Bruxelas

A saída anunciada do presidente do Conselho Europeu deixou Bruxelas à beira de um ataque de nervos, mas Orbán não deverá querer o lugar, até porque o obrigaria à neutralidade.

A saída antecipada de Charles Michel, que será candidato às eleições europeias, gerou choque em Bruxelas. Caso eleito, deverá demitir-se do cargo de presidente do Conselho antes de tomar posse como deputado, a 16 de julho.

É possível que Michel tenha em vista voos mais altos, como a presidência do Parlamento Europeu, ou até a presidência da Comissão. Voos que dependerão do resultado dos partidos do Renew Europe (RE), onde está o partido liberal belga Movimento Reformador, pelo qual se candidata.

De acordo com as sondagens, o RE poderá passar de terceira a quarta força no Parlamento Europeu, sendo ultrapassado pelo grupo Identidade e Democracia (ID). Segundo a deputada europeia Sophie in’t Veld, eleita pelo Volt holandês que também integra o RE, «O capitão está a abandonar o navio a meio de uma tempestade». Tempestade perfeita para os liberais, caso à presidência húngara da UE se somasse a perda de força no Parlamento e um Conselho presidido por Viktor Orbán.

O tecnocrata

Mediando posições entre os 27, o presidente do Conselho é peça-chave no (cada vez mais ambicioso) sistema de governança europeu. Como explica Jorge Botelho Moniz, diretor de Estudos Europeus e Relações Internacionais na Universidade Lusófona, «o cargo faz parte de um pacote acordado pelos líderes dos 27 e inclui o presidente da Comissão, do Banco Central Europeu e do Alto Representante para a Política Externa».

Mas em junho, os líderes europeus terão de chegar a consenso sob pena de Orbán, na qualidade de chefe de Estado do Estado que preside à EU, assumir temporariamente o cargo. Charles Michel não quer «antecipar a decisão que será tomada pelo Conselho Europeu em junho», mas sublinha que «existem várias opções, e se o Conselho Europeu quiser evitar Viktor Orbán, isso é muito fácil».

Uma das opções é Mario Draghi. Um tecnocrata, é visto em alguns círculos como opção segura para navegar o que se espera ser uma maré de turbulência política. Botelho Moniz considera a hipótese real, mas difícil: «Draghi é um nome unânime em Roma e Bruxelas, mas o seu nome terá sido avançado no meio da histeria da questão Orbán. E chegou à imprensa para tentar garantir que haverá sempre alternativas fortes para evitar a presidência interina de Orbán no Conselho Europeu e para valorizar a instituição, algo que o anúncio de Michel veio macular».

Um nome que, segundo Botelho Moniz, «mostra a falta de originalidade da UE para resolver os seus desafios, dado que, atualmente, Draghi já está a trabalhar com a Comissão Europeia para apresentar propostas para revitalizar a economia e competitividade europeias. Ou seja, esta parece mais uma fabulação de Bruxelas que, ao trazer o nome de um líder apartidário para a presidência do Conselho, está a dar um sinal de falta de vitalidade da democracia interna da UE».

E existem obstáculos políticos: «O facto de não ter filiação política é outro obstáculo para a concretização do nome de Draghi, dado que os cargos de liderança na UE são distribuídos segundo linhas políticas». Botelho Moniz considera «improvável que a S&D – atualmente com tão poucos governantes da sua ala a liderar executivos nos Estados-membros, com o crescimento da extrema-direita e a aproximação do grupo da ID – queira abrir mão de um cargo relevante da UE».

Para além de Draghi, circulam os nomes de Pedro Sánchez, Mette Frederiksen ou Mark Rutte.

Mudanças e resistência

Os tempos são de pressão para a alteração dos tratados da União. Em novembro, o relatório sobre a alteração foi aprovado no Parlamento. Com vista a «fortalecer a capacidade da União Europeia para agir», a iniciativa visa aumentar as competências da UE, reforçando o poder do Parlamento e alterando as regras de votação no Conselho. Em cima da mesa estão medidas como a eliminação da presidência rotativa da UE, a substituição da unanimidade, no Conselho, pela maioria qualificada, ou a criação de áreas sob competência exclusiva de Bruxelas (clima e ambiente).

É à luz destas alterações, que tocam a própria natureza da soberania e representação, que deve ser lida a atual dinâmica política. Orbán, e a presença húngara no Conselho, simboliza, para os soberanistas e conservadores europeus, a resistência ao euro-federalismo e ao espírito do Manifesto de Ventotene de uma Europa sem fronteiras e sem nações. Resistência feita em nome da soberania nacional e popular, e concretizada nas posições tomadas em questões de imigração, ou de alteração das estruturas da UE.

E se da Hungria se levantam vozes denunciando a falta de democraticidade expressa na rejeição de Orbán – como a de Judit Varga, ex-ministra da Justiça que encabeçará o Fidezs nas eleições europeias – a verdade é que Orbán, o político, não quer nem pode assumir um cargo que o forçaria à neutralidade.