Athanasius Kircher, o homem que sabia tudo

Além de dominar dezenas de línguas, Kircher idealizou e construiu aparelhos e instrumentos diversos.

Entre 1500 e 1700, em simultâneo com a disseminação da imprensa, expansão marítima, reformas religiosas e vários conflitos políticos e militares, com destaque para a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e a Guerra Civil Inglesa (1642-1651), a Europa foi palco de avanços técnicos e científicos a uma escala sem precedentes. A um interesse crescente pela criação de conhecimento, e a sua gestão e organização, juntou-se a paixão pelos gabinetes de curiosidades (Wunderkammern), verdadeiros precursores dos museus modernos. De suma importância foi o papel crucial atribuído à experimentação, como parte integrante da abordagem racional no estudo dos fenómenos naturais. Igualmente relevante foi o aparecimento das Academias.

Foi durante este fascinante período que surgiu em cena o jesuíta e polímata alemão Athanasius Kircher (1602-1680). Durante mais de 40 anos lecionou no Collegium Romanum, em Roma, onde ele próprio estabeleceu uma Wunderkammer. Considerado uma sumidade, a sua fama ficou a dever-se à diversidade de temas a que se dedicou, abrangendo as humanidades, a filosofia natural e a astrologia. A estas últimas estavam associados o ocultismo e a magia natural, considerados, na época, meios legítimos para desvendar os segredos do Universo. Afinal, o oculto era o invisível.

Além de dominar dezenas de línguas, Kircher idealizou e construiu aparelhos e instrumentos diversos. Entre as inúmeras invenções que lhe são atribuídas contam-se o megafone, a lanterna mágica (ou pelo menos o seu aperfeiçoamento), a harpa eólica e o pantómetro universal, um dispositivo que permitia medir ângulos e distâncias. Na filosofia natural, destacou-se pelas observações e teorizações sobre fósseis e vulcões (chegou a penetrar na cratera de um!), assim como pela sugestão de a peste ser causada por um microrganismo. Na verdade, foi um aventureiro que escapou várias vezes à morte. Como autor, foi extremamente prolífico, tendo publicado dezenas de tratados, belissimamente ilustrados, sobre egiptologia e sinologia, história, magnetismo, ótica, mecânica, criptografia, matemática, microbiologia, geologia e música. Já lhe chamaram ‘O Mestre das Cem Artes’ e ‘O Homem que Sabia Tudo’.

No seu monumental Musurgia Universalis (1650), considerado o tratado musical mais ambicioso, abrangente e influente dos séculos XVII e XVIII, Kircher descreveu praticamente tudo o que na época se sabia sobre som, produção sonora, perceção auditiva e música ocidental. Esta sua obra já foi comparada aos dois discos de ouro lançados no espaço pelos satélites Voyager em 1977. Com sons e imagens selecionados como amostras da diversidade da vida e culturas da Terra, estes discos são dirigidos a qualquer forma de vida extraterrestre que os encontre. No ano do jubileu de 1650, o Musurgia Universalis foi enviado para todo o mundo católico, da América latina às Filipinas.

Uma das invenções mais interessantes de Kircher foi a Arca Musarithmica, uma técnica de composição musical apresentada no Musurgia Universalis. Também conhecida como Arca Musical, baseia-se num algoritmo matemático e possibilita, mesmo a um leigo, compor música sacra a quatro vozes. Basta seguir determinadas regras e efetuar combinações predeterminadas. Trata-se de uma caixa com um conjunto de placas de madeira, cada uma delas com uma série de números inscritos, correspondentes a notas musicais e a padrões rítmicos. É possível ‘compor’ em ‘estilo simples’, seguindo as quatro vozes o mesmo ritmo, ou no que Kircher chamou de ‘estilo florido’, também conhecido como contraponto de quinta espécie, em que cada voz possui alguma independência rítmica. O algoritmo de Kircher, que se terá baseado nas técnicas de combinação musical do francês Marin Mersenne (1588-1648) e na lógica combinatória do catalão Ramon Llull (c.1232- c.1316), permite que a partir de uma pequena quantidade de material musical resulte um número surpreendente de melodias. O método foi recentemente implementado numa aplicação web (https://www.arca1650.info/).

Com a sua Arca Musical, Kircher não apenas antecipou pioneiros da música algorítmica e compositores de música aleatória, como Lejaren Hiller (1924-1994), que por sinal era químico, e John Cage (1912-1992), mas também transcendeu o seu tempo. Hoje, com o avanço da IA, as possibilidades de criar música algorítmica e explorar novas expressões musicais representam a continuação natural da busca pela criação musical automática que Kircher ousou iniciar.

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