Há uns anos atrás, talvez seis ou sete, escrevi um artigo sobre o futuro da Democracia. Interrogava-me se esta não estaria esgotada, para concluir exactamente o contrário: a Democracia parecia esgotada precisamente porque já tinha vencido. Na altura, só o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português a desafiavam eleitoralmente, mas sempre com resultados deprimentes. Passados anos, o panorama alterou-se significativamente. Vou-me cingir a Portugal, mas não sem antes advertir de que o fenómeno é geral, pelo menos na União Europeia: as ‘franjas’ à direita e à esquerda foram emergindo, medrando e impondo-se. Temos hoje a Social-Democracia sitiada. A persistir esta tendência, não digo que o Centro se evapore, mas digo que se tornará irrelevante, incapaz de ganhar eleições.
Sitiada, à esquerda, por um Partido Socialista que, sob a batuta de Pedro Nuno Santos, promete reverdejar o verdadeiro Socialismo em aliança com o Bloco e o PC; promete, em suma, desenterrar e recuperar as genuínas raízes estatistas do Socialismo, ao que parece desprezadas por oito anos de governação centrista sob a liderança de António Costa. Quando Pedro Nuno avisa e promete que chegou a vez dele e da sua geração, dando até a entender que António Costa passou anos a arrastar os pés, é precisamente isso que ele quer dizer: que Portugal, caso ele ganhe as eleições, vai finalmente ter um governo genuinamente socialista, quer dizer, mais à esquerda, mais estatista, com a iniciativa privada vigiada e condicionada; com o Estado, e não o mercado, a designar quais os sectores empresariais mais interessantes.
E sitiada, à direita, pelo populismo do Chega que, sob a batuta de André Ventura, promete executar uma espécie de limpeza étnica do país, morigerar os costumes privados e vergastar a corrupção que varre e degrada o mundo político. A Social-Democracia, que nunca incorreu num discurso demagógico unicamente destinado a cativar as ‘massas ignaras’ (Alexandre Herculano), vê-se e fica isolada na sua verticalidade originária, encurralada entre os populismos de direita e os populismos de esquerda.
Mas, cumpridos os seus compromissos históricos, ou seja, a edificação de um Estado Social em Liberdade e Democracia, a Social-Democracia como que esgotou o seu potencial de sedução. Não basta o Estado Social: Serviço Nacional de Saúde, Educação Pública gratuita, Segurança Social. A Liberdade e a Democracia pouco importam. O povo quer mais, e as ‘franjas’, à esquerda e à direita, prometem-lhe mais. No caso português, com o Estado Social à beira do colapso após oito anos de governação costista, não admira a receptividade pública que encontram. Mas, noutras paragens, surgem igualmente ‘franjas’ que desafiam a Social-Democracia. A principal razão disso reside num problema para que esta não tem solução: as migrações de milhares e milhares de vencidos da vida dos seus lugares de origem em direcção à Europa, onde procuram uma vida digna.
Demasiada gente na Europa, com algumas nuances consoante os países, rejeita esta invasão de ‘bárbaros’ que lhe recorda a queda do Império Romano. Por um lado, repudia a enxurrada de gente exótica que transforma a paisagem urbana tradicional e enche os hospitais com doenças entre nós desconhecidas; e que, por outro lado, consome fatias do orçamento que em princípio se destinariam aos nativos. Ora as fundações morais da Social-Democracia determinam que aos migrantes seja concedido abrigo e protecção. Mas o cumprimento deste imperativo rouba-lhe votos e insufla as ‘franjas’. Que fazer ?
Para a ‘franja’ da extrema-esquerda não há problemas nem dilemas. O dinheiro não é problema: basta, como Mariana Mortágua recomendava há dois anos, «perder a vergonha e ir buscar o dinheiro onde ele existe». Mas a Social-Democracia não tem tão desbragado desembaraço moral. No que toca à ‘franja’ da extrema-direita, André Ventura também se revelou muito desinibido: o financiamento das suas miríficas promessas resolve-se com uma taxação especial sobre a Banca.
Em Portugal, entre o descalabro do Estado Social e a imigração alegadamente descontrolada, a Social-Democracia encontra-se emparedada entre as ‘franjas’ que o atacam pelos seus dois flancos. Oxalá o próximo dia 10 de Março não confirme isto mesmo.
As franjas
Demasiada gente na Europa, com algumas nuances, rejeita esta invasão de ‘bárbaros’ que lhe recorda a queda do Império Romano.