A Martha Stewart do século XVII

Woolley, que já foi apelidada de ‘Martha Stewart do século XVII’, passou a viver da escrita, tendo publicado mais quatro manuais.

Para o esplendor intelectual do século XVII, marcado por avanços significativos em várias áreas do conhecimento, nomeadamente na ciência e na técnica – a chamada Revolução Científica –, contribuíram de forma notável figuras como o filósofo francês René Descartes. Com a sua célebre asserção ‘Penso, logo existo’, que encerra a ideia de distinção entre corpo e mente, defendendo que a última é imaterial e a sua existência é indubitável – o chamado dualismo corpo-mente –, o grande filósofo forneceu argumentos capazes de desafiar a antiga convicção de que a mulher era intelectualmente inferior ao homem. Não obstante, na época, foram poucos os que o fizeram e ele próprio jamais defendeu ou elogiou o sexo feminino, mesmo tendo-se correspondido com duas intelectuais – Isabel da Boémia e Cristina da Suécia.

A inglesa Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle, escritora e filósofa natural que chegou a cruzar-se com Descartes, contou-se entre os raros defensores da igualdade de capacidades intelectuais entre homens e mulheres, ideia que expressou em Observações sobre Filosofia Experimental (1667). Nesta obra, onde criticou o recurso à experimentação como via de compreensão da Natureza, sugeriu ironicamente que as mulheres poderiam ser boas filósofas experimentais na cozinha, descobrindo «como criar neve artificial, com cremes ou coalhadas batidos em espuma; gelo, através da transparência, cristalinidade e glaceado das conservas de frutas; geada, através de ervas e flores cristalizadas; granizo, através de pequenos confeitos de água e açúcar com claras de ovos; assim como muitas figuras assemelhadas a animais, pássaros, vegetais, minerais, etc.». Lançando mais umas farpas, acrescentou: «Estou confiante de que as mulheres trabalhariam tão bem como os homens com o fogo e a fornalha, pois sabem fazer bons cordiais e destilados, mas duvido que descobrissem a pedra filosofal, pois o nosso sexo é mais propenso a gastar ouro do que a produzi-lo». Apesar do sarcasmo de tais palavras, a referência às aptidões experimentais das mulheres na cozinha e no alambique, numa altura em que continuavam excluídas dos círculos da filosofia natural (ciência), como as universidades e as recém-criadas academias, não deixava de refletir o espírito da época.

Em 1661, um ano após a fundação da Royal Society em Londres – com a missão de desenvolver o conhecimento natural –, a inglesa Hannah Woolley, que fora criada de Lady Maynard, com quem aprendeu as artes da cozinha e da medicina caseira, lançou O Guia das Senhoras: Seleção de Experiências e Curiosidades sobre Conservas, um livro de receitas, remédios e etiqueta que depressa se tornou um best-seller. Woolley, que já foi apelidada de ‘Martha Stewart do século XVII’, passou a viver da escrita, tendo publicado mais quatro manuais. Além de apresentarem receitas convencionais, os seus livros também incentivavam as mulheres a confecionar pratos que representassem animais ou cenas da Natureza. Por exemplo, na receita ‘Ouriço em pudim’, aconselha a usar lascas de amêndoa e passas para imitar os espinhos e os olhos do animal. Noutra obra sua, A Despensa como a da Rainha (1670), ensina a criar uma peça central de mesa que representa um rochedo à beira-mar, com a particularidade de dispensar vinho. Feito de biscoito, é decorado com búzios e ostras de pasta de açúcar, doces de cores diversas, e, a rematar, um pavão de maçapão, com penas verdadeiras, a beber ‘água’ feita de gelatina. Em consonância com o desenvolvimento da ciência experimental, Woolley denominou estas receitas de ‘Novas Experiências’.

Na época, surgiam peças verdadeiramente insólitas nas refeições das classes altas, como a empada com pássaros vivos ou o veado de pasta de açúcar perfurado por uma flecha, libertando vinho quando esta era retirada. Replicar culinariamente a vida e a morte refletia, até certo ponto, as descobertas científicas da época. Enquanto a Royal Society se dedicava a observações detalhadas com instrumentos como o microscópio, as mulheres, explorando a Natureza à sua maneira, questionavam a composição do mundo material, criando caracóis e morangos com pasta de açúcar e imitando a neve com natas batidas.
Ironicamente, Francis Bacon, mentor espiritual dos fundadores da Royal Society e teorizador do Método Experimental, faleceu de pneumonia em 1626 após ter enregelado durante uma experiência em que tentava investigar a conservação da carne pelo frio, enchendo uma galinha com neve.