Uma grama de cocaína, por exemplo, só é vendida uma vez. Quantas vezes é que isso pode acontecer com uma criança? Em 24 horas pode ser traficada inúmeras vezes. Este é um cenário assustador e, se repararmos bem, não é um tema a que os meios de comunicação têm dado muita atenção. No entanto, está na hora de mudar isso. Será mais importante apanhar os pedófilos ou salvar as crianças? Será possível que um homem que desmantelou redes de tráfico tenha assediado mulheres? Existirão intenções políticas por trás disso?
Tim Ballard, o ex-agente da CIA que fundou uma organização de combate ao tráfico sexual infantil – Operation Underground Railroad (OUR) –, é a inspiração do personagem central do polémico filme co-escrito e realizado pelo mexicano Alejandro Gómez Monteverde, Sound of Freedom que esteve até há bem pouco tempo nas salas de cinema e que revelou algumas das redes de tráfico infantil entre os EUA, a Colômbia e o México. Segundo o filme, através da organização, Ballard e outros ex-agentes da autoridade participaram em missões à volta do mundo, fazendo-se passar por turistas sexuais e resgatando crianças que eram raptadas depois de participarem em castings para serem modelos.
Ligado a teorias da conspiração?
Ballard, interpretado pelo ator Jim Caviezel é, por isso, uma pessoa real que largou o seu emprego no Departamento de Segurança Interna dos EUA para procurar uma criança desaparecida que foi sequestrada por traficantes sexuais. A sua missão leva-o até à Colômbia, onde salvou não apenas Rocio, como muitas outras. «Este é um mundo completamente desarrumado», começamos por ouvir no princípio do filme que nos atira para a história sem nos preparar e que, ao longo dos minutos, vai despertando o herói em cada um de nós, obrigando-nos a uma vigilância coletiva, muito por conta da personagem principal. No entanto, essa mesma figura – por quem nos apaixonamos na longa-metragem –, tem sido destruída por inúmeras polémicas e acusações. Aliás, além dela, o próprio filme é controverso pela sua alegada proximidade com a conspiração do QAnon – essa teoria é fomentada pela extrema-direita americana e defende que existe uma rede de pedofilia e tráfico infantil formada por políticos, pessoas influentes, satanistas e canibais que utilizam o sangue infantil para sugar um hormónico da juventude. Os seus adeptos acreditam que o governo encobre essa rede e que o seu grande combatente é o ex-presidente americano Donald Trump. Além disso, acredita-se que o ator Jim Caviezel andou a promover o filme com declarações questionáveis e a saudar o próprio movimento QAnon. Em 2021, foi promovê-lo a uma conferência no Oklahoma, intitulada Health and Freedom, e na qual participavam vários oradores associados ao movimento.
O realizador defende-se
No entanto, segundo o realizador Alejandro Monteverde, isso não podia estar mais longe da verdade. Durante uma exibição especial do filme em Londres, o cineasta esclareceu que «o filme não é baseado na conspiração do QAnon». De acordo com Monteverde, o guião começou a ser escrito em 2015, ou seja, a conspiração ainda nem existia. Quando questionado sobre a importância do filme entre a direita dos EUA, Monteverde respondeu: «Tudo o que tiver um ângulo político vai dividir. Quando um realizador faz um filme, não há nenhum contrato sobre o que as pessoas vão dizer sobre ele depois», cita o The Guardian.
Segundo o jornal britânico o filme foi rodado em 2018 e deveria ser distribuído pela 20th Century Fox. Porém, quando os estúdios foram adquiridos pela Disney em 2019, o lançamento foi adiado. Os direitos do filme acabaram por ser adquiridos pela distribuidora Angel Studios, com sede nos EUA e de «tendência cristã». Também esta considerou as acusações infundadas: «Qualquer pessoa que tenha visto este filme sabe que não tem nada a ver com teorias da conspiração. É sobre um homem que fez algo corajoso», afirmou à BBC.
Além disso, há quem interrogue a veracidade da história. Apesar de ser vendida pela produtora como uma história real, críticos e até autoridades questionam a versão. Tim citou repetidas vezes que a sua organização sem fins lucrativos, ajudou na descoberta de um caso de tráfico humano na cidade de Nova Iorque. Além disso, Ballard afirma ter ajudado a resgatar uma vítima da rede. No entanto, de acordo com transcrições judiciais a que a Vice News teve acesso, a vítima terá escapado sozinha dos traficantes, sem nenhuma intervenção do ex-agente.
De herói a predador?
Mas não fica por aqui… Pouco tempo depois do lançamento do filme, o ativista Tim Ballard foi acusado de má conduta sexual. Segundo uma investigação do Vice, sete mulheres acusam o fundador da Operation Underground Railroad de coerção durante as missões secretas no estrangeiro para resgatar crianças dos traficantes. De acordo com as alegações, este pressionava as mulheres a partilharem a cama com ele ou tomarem banho juntos para convencer os traficantes que eram casados. Recorde-se que Ballard é casado e tem nove filhos. Além disso, Ballard terá enviado pelo menos a uma delas, uma fotografia onde aparece apenas com roupa interior e com tatuagens falsas. A outra terá perguntado «até onde ela estava disposta a ir para salvar crianças». Fontes próximas à ONG também afirmaram que Ballard aplicou as mesmas técnicas de investidas sexuais com ex-voluntárias da OUR.
Em resposta à reportagem da Vice, a Operation Underground Railroad destacou que Tim Ballard renunciou à posição de presidente da ONG em junho deste ano – quando as acusações começaram a surgir. A OUR sublinhou que se «dedica a combater o abuso sexual» e que «não tolera assédio ou discriminação por parte de qualquer pessoa da organização». Ballard pertence ainda a uma Igreja Mórmon que também emitiu um comunicado. Nele acusa o ativista de abusar da confiança do seu presidente para benefícios pessoais e «atividades vistas como moralmente inaceitáveis».
O ativista, que se quer candidatar ao Senado dos EUA pelo Partido Republicano, disse à Vice que tudo não passa de uma conspiração contra ele: «Não é verdade, nada do que ouviram é verdade. Algo maligno está a acontecer. Ainda não sei o quê», defendeu. Segundo os meios de comunicação internacionais, Ballard é um aliado de Donald Trump, já tendo ocupado um cargo nomeado num conselho público-privado antitráfico na administração do ex-presidente e já o recebeu no seu podcast – The Tim Ballard Podcast.
Numa declaração datada de 18 de setembro de 2023 e emitida através do Fundo SPEAR, Tim Ballard voltou a negar as acusações de má conduta sexual, chamando-as de «infundadas». «Tal como acontece com todos os ataques ao meu caráter e integridade ao longo de muitos anos, as últimas alegações sexuais veiculadas pelos media são falsas. São invenções infundadas destinadas a destruir-me a mim e ao movimento que construímos para acabar com o tráfico e a exploração de crianças vulneráveis», afirmou. «Durante o meu tempo na OUR, desenvolvi diretrizes rígidas para mim e para os nossos operadores de campo. O contacto sexual era proibido e eu liderei pelo exemplo. Dada a nossa atenção meticulosa a esta questão, qualquer sugestão de contacto sexual inapropriado é categoricamente falsa», acrescentou.
Se olharmos apenas para o filme, longe de todas estas polémicas, este parece feito com “muito bom gosto”. Tal como acima referido, o realizador atira-nos para uma atmosfera fria e sombria sem nos avisar, onde nos deparamos com uma das maiores perversidades da humanidade. Tudo é revelado de uma maneira bastante sóbria, mas não é por isso que o espetador se sente distante da história. Aliás, desde o primeiro momento, há quase que uma responsabilidade coletiva por aquilo que se vê na tela. Que realidade é esta? De que forma podemos evitá-la? Desde o trabalho do ator principal, até aos papéis representados por todas as crianças que fazem parte do elenco… Por mais que possam existir peças soltas e interrogações, aquilo que vemos é real. Depois de vermos a longa metragem, a interrogação que fica é: como?