1.Salta aos olhos de toda a gente o imbróglio criado com os processos criminais pendentes abrangendo figuras políticas e outras de elevado estatuto societário. Não funciona mais o aforismo, ‘à Justiça o que é da Justiça’, desligado do seu tempo e impacto no estado geral do país.
O arrastar do julgamento de um ex-primeiro-ministro por cerca de uma década, a queda de um Governo por suspeita de tráfico de influências, as detenções por corrupção na Região Autónoma da Madeira com a demissão do presidente do Governo Regional, os casos que envolvem hierarcas da Administração Pública, entre outros, difundem a ideia de um país de corrupção larvar, o que não corresponde à realidade. Todavia, logo que propagada, essa imagem prolonga-se no tempo sem ser esclarecida, o que agrava a situação.
Vê-se com preocupação as diligências-espetáculo do Ministério Público e dos Órgãos de Polícia Criminal, autorizadas por juízes de instrução, prévias da detenção e sua validação judicial (ou não), sem qualquer atenção ao momento em que são realizadas – à Justiça é indiferente o timing, diz-se -, muitas vezes em aparente conjugação com alguns OCS, com divulgação fotográfica dos visados e excertos desgarrados de escutas telefónicas, em horários nobres de televisão, marcando indelevelmente arguidos ou simples suspeitos que constitucionalmente se presumem inocentes. Investigações com infindáveis escutas, um método primacial comodamente usado para recolher prova indiciária apesar da sua forte intrusão, e que depois se arrastam por vários anos.
É notório o desgaste nas instituições, assim como o sentimento de insatisfação da comunidade sobre este modo de se ‘fazer Justiça’.
- Dizem alguns que o legislador não deve ‘agir a quente’, mas a verdade é que também não agiu a frio e mesmo se algumas medidas foram tomadas ainda não surtiram efeito (o caso dos megaprocessos).
São cada vez mais as vozes que se insurgem contra tal estado de coisas: trata-se de uma subversão de poderes, na atuação do MP e do Juiz de Instrução que desequilibra o edifício democrático, levando à presunção de culpa dos políticos o que no futuro deixará a política para os corruptos ou para os medíocres (Pedro Marques Lopes, na revista Visão); a publicitação das investigações pelo MP assentes em pouco substanciadas denúncias anónimas, conduz à demissão imediata de titulares de altos cargos políticos, traduzindo-se num poder sobre a vida política sem transparência nem escrutínio democrático (Pacheco Pereira, na Sábado); a democracia está a cair sob o jugo da ação judicial, o que não é normal nem aceitável, ainda que a pretexto do combate à corrupção, com um modo de atuação da justiça em que os seus agentes aparecem como os heróis sendo os políticos os bandidos, e se o MP cumpre o seu papel que o não faça à custa do equilíbrio de poderes, não sendo as buscas espalhafatosas que o enaltecem mas as provas reunidas que levam às condenações (Manuel Carvalho, no Público); fazer tábua rasa das limitações constitucionais, desde as limitações à liberdade durante a pandemia, aos ‘arranjos’ para a aprovação do OE ou à justificação para se adiar o primeiro interrogatório de um arguido ou a transferência de um detido das ilhas para o continente para ser ouvido, o que se está a pôr em causa é todo o edifício do regime, à vista dos mais altos magistrados da Nação, incluindo o Presidente da República (Mário Ramires, no Nascer do SOL); há que buscar o rigor e exaustividade da investigação e as garantias máximas do arguido, sendo que o equilíbrio necessariamente se afasta da perfeição (Henrique Monteiro, Expresso); de dentro do próprio sistema judiciário alerta-se para a Justiça a ser devorada pelo monstro que criou, o que tem de ser parado, e apontam-se medidas concretas como ponderar o princípio da legalidade na ação penal, discutir os termos da justiça penal negociada, pelo menos na pequena e média criminalidade, questionar a utilidade da fase de instrução criminal tal como se encontra desenhada, dar ao juiz do processo um poder efetivo para travar a litigância abusiva com intenção dilatória (Manuel Soares, no Público).
Estão subjacentes a tais posições os riscos que a não atuação do Estado está a provocar, sem esquecer que as alterações a construir não podem ser feitas à custa de um retrocesso nas garantias processuais essenciais.
- De há muito se reconhece que o sistema de Justiça carece de uma reforma profunda (e não de simples ‘remendos’) que o modernize, o dote de todos os meios humanos e financeiros necessários – veja-se o arrastar da situação dos funcionários judiciais e os efeitos provocados na administração da Justiça, em que a ministra tem ignorado o prejuízo causado todos os dias aos que recorrem aos tribunais – e lhe dê uma visão de celeridade e eficácia que o erga na respeitabilidade dos cidadãos. E tal reforma não se fará apenas com os contributos dos atores do próprio sistema, com tendência desculpante, mas também e sobretudo dos exteriores ao meio e dos seus destinatários.
Recorda-se a atenção que o Presidente Jorge Sampaio dedicou a esta matéria, infelizmente também sem sucesso, assistindo-se hoje ao bradar no deserto do presidente do STJ, sem eco audível nos legisladores.
- Mas enquanto não se executa aquela necessária reforma, que até pode (e deve) ser gradual, porventura precedida de algumas alterações da Constituição, existem regras constitucionais cuja degradação ou violação são evidentes e não podem continuar.
Segundo a Constituição, «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo» (artigo 20º/4), sendo que «para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos» (n.º 5 seguinte).
Tal princípio fundamental do prazo razoável tem a ver com todas as causas (civis, penais, laborais, administrativas e tributárias) mas torna-se particularmente acutilante nas causas penais.
A complexidade de alguns processos, as largas possibilidades de recurso, aliadas à sempre reclamada falta de meios do MP acabam por levar à ultrapassagem dos prazos fixados na lei ou à sua violação frontal. E ainda quanto a prazo razoável, veja-se o caso da apresentação dos detidos em 48 horas a um juiz, numa insuportável interpretação de que só existe termo inicial para apresentação do arguido, mas já não está previsto o termo final para a aplicação das medidas de coação. Ou seja, cumpre-se a Constituição se o detido é apresentado em 48 horas a um juiz, mas não se ofende se se aplica uma medida de coação (ou é libertado) sem qualquer limite de prazo, continuando preso, até sem saber porquê. Não pode ser!
- A globalização tende a encurtar as diferenças nos próprios sistemas jurídicos, pelo que as experiências realizadas em qualquer parte do mundo podem hoje ser transponíveis com facilidade. Esbate-se a oposição entre sistemas anglo-saxónicos e continentais e cada país ou região procura os modelos que se mostrem mais eficazes.
Assim, por exemplo, e como já foi salientado, a esconjura do princípio da legalidade estrita em troca da admissão do princípio da oportunidade pode ser uma medida útil – infrações menores não são perseguidas, uma vez admitida a culpa e negociada a sanção perante o juiz (o plea bargaining dos anglo-saxónicos) com economia de tempo e controlo dos resultados.
Outro exemplo: o reforço da oralidade nos tribunais, com decisões que não impliquem fundamentação exaustiva, às vezes quase asfixiante e que tanto labor consome aos magistrados – sabido que se generalizou o registo áudio ou audiovisual das diligências – aliada a um mais amplo poder do juiz para sanear o processo dos expedientes dilatórios ou inúteis. Aquele ‘princípio de concisão’ deve ser estendido aos advogados, evitando-se milhares de páginas de alegações e posteriores despachos.
E já que o país dispõe de uma Polícia Judiciária reforçada de meios humanos e técnicos, apoiada na subida de qualificação funcional dos seus inspetores, gozando de condições remuneratórias apropriadas e foi liberta de investigações menores, há que fazer corresponder formas processuais mais ágeis e expeditas.
A violação do prazo razoável na investigação e, se for o caso, no julgamento, além do prejuízo moral desnecessário dos arguidos, acarreta o descrédito do sistema e a tardia pacificação da comunidade.
Alterar o statu quo é imperativo, pois como se diz e repete uma Justiça fora de tempo não é Justiça. Onde estão os guardiões da Constituição da República? l
Ex-diretor-geral da Polícia Judiciária